segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Abram alas para a esperança!

                      

            O dia da esperança cai no último dia do ano: 31 de dezembro. Não deve ser por acaso, afinal, final de ano implica planos, mudanças e, principalmente, esperanças de realização dos nossos sonhos. Nessa época, aguardamos com confiança que coisas boas nos aconteçam e, para isso, procuramos dar uma guinada no nosso comportamento, alterando assim os nossos pensamentos. Buscamos ser mais otimistas, menos fatalistas; mais realistas, mas sem perder a esperança em dias melhores.
            Sabemos que depois do dia 11 de setembro de 2001 “o mundo nunca mais será o mesmo”. A derrubada das torres do Word Trade Center trouxe, ao mundo, a dor, a injustiça, a guerra e os milhares de mortes de inocentes, além da incerteza que, agora, ronda o mundo: a incerteza da partida, a incerteza da chegada, a incerteza do futuro...
            A tolerância e a justiça são os maiores anseios da população mundial.   Que a justiça social venha para combater a miséria, a fome, o desemprego.
            Que o homem aprenda a ser mais tolerante para com o outro, pois, sendo assim, a agressividade não reinará no coração humano, destruindo tantas vidas, e esse, então, será, verdadeiramente, um exemplo de fraternidade.
            Já está provado que, sem a esperança, não há remédio. A ciência reconhece cada vez mais a relação entre esperança e cura. Cada vez que se testa um novo remédio, o procedimento médico recomenda que os pacientes sejam divididos em dois grupos. Um recebe o remédio verdadeiro; o outro, o placebo. Quanto maior for a diferença entre os resultados, maior a eficácia farmacológica da substância. Mas como a ciência explica que pacientes que receberam medicamentos inócuos apresentem melhora? Não há resposta definitiva, mas é unânime entre os médicos a crença de que a esperança tem efeito real sobre os pacientes.
            E, então, se esperança é sinônimo de fé no futuro, e se a “fé remove montanhas”, que o ano de 2013 seja “infestado” de esperança na política, na educação, na saúde, e, principalmente, no ser humano.
            Que o homem acredite que nasce nele a vontade de mudar para construir um mundo melhor.‘E um feliz ano novo “aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de cumplicidades”(Frei Betto).
            Que venha a esperança em um mundo melhor!

sábado, 1 de dezembro de 2012

Ao mestre, com carinho!


José Carlos Buosi, na década de 70, foi professor de Português no Ginásio Estadual de Vila Munhoz, na Vila Maria, São Paulo. A foto acima, quarenta anos depois. A crônica: "Ao mestre, com carinho" escrevi em homenagem a ele, que tanto marcou a minha vida escolar.




Viajo no túnel do tempo. Estou na década de 70, precisamente no ano de 1972, na capital paulista. Tenho treze anos de idade e curso a antiga terceira série ginasial. Três professores marcaram a minha adolescência estudantil: dois de Português e um de Matemática.
         “Seu” Valter talvez ainda não completara 30 anos, porém, sua cara fechada, seu sorriso irônico e, principalmente, sua estupidez faziam-me acreditar que beirava os 40. Adentrava na sala de aula silencioso e, ao ouvir o burburinho dos alunos, no intervalo de uma disciplina para outra, postava-se ao lado da mesa, erguia o apagador de madeira compacta, com o braço em total elevação, e soltava-o em cima da mesa pesada de madeira. O barulho soava como um tiro e os alunos assustados viam seu olhar aterrador, banhado por um sorriso irônico e tétrico. Essa era a sua forma de cumprimentar seus alunos e exigir silêncio.
         Sua disciplina era a Matemática, que passou a ser a mais odiada de todas as matérias, por boa parte de seus alunos. Se a matéria não era assimilada, pouquíssimos se arriscavam a dizer que não entenderam, pois o professor, na sua didática ignorante, faltava chamar o aluno de burro por isso. E gostava de expor-nos ao ridículo. Chamava ao quadro, para resolver às questões, justamente aqueles que ele sabia que não conseguiriam. E aumentava-lhes a vergonha, exigindo que resolvessem, mesmo quando o aluno dizia que não sabia. E ele insistia, e ordenava-lhes que tentassem, para sorver o gostinho de ver tanto absurdo criado pelo aluno na tentativa desesperada de cumprir as ordens.
         Foi a marca mais atroz que eu trouxe dessa disciplina, muito embora eu não tivesse tanta dificuldade. Mas o que não consegui aprender só foi resolvido anos depois, em outra escola e com uma professora amante da matemática e interessada no aprendizado de seus alunos.
         Da disciplina de Português, guardo valiosíssimas lembranças. Desde a minha alfabetização, aos sete anos de idade, encantei-me com as palavras, primeiramente, com a poesia que, dada a minha facilidade para decorar, declamava-a sempre nas festas cívicas da escola. Vêm, da professora do antigo primário, os primeiros incentivos ao me elogiar pelas diversas leituras em voz alta a que ela me submetia nas aulas. Só no ginásio, aos 12 anos de idade, vim descobrir a mágica das metáforas. E cabe – aos meus dois excelentes professores de Português: José Carlos e senhor Aristeu, amantes da língua portuguesa e, por isso, entusiasmados e inovadores em suas aulas, conseguindo que assimilássemos a matéria de forma lúdica e por meio de outras artes: da música, por exemplo – o meu amor pelas palavras.
         O ano era 1972 e eu estava na terceira série ginasial (oitavo ano, hoje). O professor José Carlos, sempre alegre e sorridente (gostava de empregar o verbo amar em seus exemplos), adentrou na sala com um antigo gravador a pilha. Colocou a fita cassete e a música, “Minha História”, de Chico Buarque, começou a tocar:
         “Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar. E só sei que falava e cheirava, e gostava de mar. Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente. E minha mãe se entregou a esse homem, perdidamente. .. Esperando parada, pregada na pedra do porto, com seu único e velho vestido cada dia mais curto...”
               Nenhum barulho se fazia na sala. Estávamos extasiados.
            Não dava as respostas. Atiçava a nossa curiosidade, fazendo-nos enveredar pela mágica da poesia:
·    Descobrimos que o homem era um cigano: “... tinha tatuagem no braço e dourado no dente.”;
·        A existência da aliteração: “... esperando parada, pregada na pedra do porto”;
·  A mulher estava grávida: “com seu único e velho vestido cada dia mais curto...”

         Passados exatos quarenta anos, e parafraseando a poetisa mineira, Adélia Prado: “o que o coração guarda a memória não esquece”, afirmo: é inesquecível.
        
         Hoje, quando deito palavras no papel, quer seja em verso ou em prosa, é impossível não recordar daqueles que foram a mola propulsora pela opção do meu caminho às letras, além de serem os primeiros responsáveis pelo conhecimento linguístico que adquiri e levarei para o resto da minha vida.
         Cada conquista de um prêmio literário é dedicada aos mestres da minha vida escolar.
 A eles, o meu carinho e a minha eterna gratidão!

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Alcione Araújo - Um pescador de palavras!





Morreu Alcione Araújo. Alcione cronista, Alcione dramaturgo, Alcione romancista. Mineiro magoado com Minas, Mineiro de nascimento, Alcione tornou-se carioca por muito tempo, e, em Belo Horizonte, nas últimas duas vezes em que estive com ele: na Academia Mineira de Letras e na Sala Juvenal Dias, no Palácio das Artes, por ocasião do lançamento do seu último romance, Ventania, Alcione dizia ao público que os outros Estados o acolhiam melhor que Belo Horizonte. E eu ficava pensando o por quê. Coincidência ou não, quando, em dezembro de 2010, do lançamento do seu livro de crônicas: Cala a boca e me beija, na Academia Mineira de Letras, o auditório da Academia não estava lotado. Naquele mesmo dia, e mesmo horário, no auditório da Cemig, Luiz Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura se apresentavam ao público. Depois, na sala Juvenal Dias, em novembro de 2011, a presença de Alcione coincidiu com o show do cantor Roberto Carlos no grande auditório do Palácio das Artes. E fiquei pensando se o Alcione dizia isso pela ausência de grande público...
Certo é que o cronista Alcione Araújo que tanto encantava os seus leitores nas manhãs de segunda-feira, com a sua crônica no Jornal Estado de Minas, “encantou-se” em 15 de novembro de 2012, dia da Proclamação da República e pertíssimo de completar dez meses do falecimento de outro grande escritor mineiro, Bartolomeu Campos de Queirós, em 16 de janeiro deste ano. E eu lhe dizia que não havia dia melhor para as suas crônicas: segunda-feira, início da semana, quando muitos estão apáticos pela semana de trabalho que se inicia, abrir o jornal, pela manhã, antes de “pegar no batente” e dar com a prosa poética do Alcione, falando de pássaros, de mar, de amor, da chegada do outono, era o mesmo que se alimentar de coragem, de ânimo para dar sequência à vida... Alcione Araújo faleceu em um hotel de Belo Horizonte, após retornar de um evento em Ouro Preto. Por ironia do destino, nos braços da capital mineira.
Tal qual a ave marinha, alcíone, que mergulha para apanhar peixe, o escritor Alcione Araújo mergulhava fundo na literatura, pescando, para nós, seus leitores, as mais belas palavras.
As segundas-feiras mineiras não serão mais as mesmas, Alcione.
Amanheceremos vazios de você!

domingo, 4 de novembro de 2012

O ônibus nosso de cada dia!



Não sou de burlar regras, tampouco, dado a mudá-las. Como cidadão pacato, trabalhador e cumpridor dos meus deveres para com a sociedade e a nação, vou traçando o meu destino, conforme Deus, a política e a vida me permitem. Pai de dois filhos: dois e seis anos, me aportei nesta cidade há cerca de dois meses. Paulista de nascimento, carioca por muito tempo, estou aos poucos me tornando mineiro por comedimento, embora ainda não consiga assimilar por que “mineiro trabalha quieto”. Prova disso são os incontáveis protestos que ando fazendo e nada de ver os resultados.
Como habitante desta metrópole, frequentemente, me torno passageiro dos ônibus e levo a bordo duas crianças e uma sacola com os seus pertences. Creio ser desnecessário explicar a dependência de um adulto para acompanhá-las num coletivo, haja vista que, em horário de pico, somos como formigas em torrão de açúcar: literalmente empurrados e pendurados. Como ditam as regras e o bom costume, entro pela porta da frente trazendo ao colo o caçula, e na outra mão equilibro o maiorzinho e a sacola. O ônibus se mantém estagnado apenas quando alcanço os seus degraus. Já no seu interior, o motorista dá a partida. E é aí que começa a minha aventura de escalada, pois para alcançar a porta de saída é a um verdadeiro alpinismo que me lanço, uma vez que sou obrigado a equilibrar o corpo sustentando a criança no colo e amparando a outra, enquanto os solavancos do ônibus e a compressão das pessoas ensaiam me levar ao solo. Nunca fui equilibrista circense, se bem que sempre o admirava estático nos circos, mas com a experiência e a proteção de Deus tenho conseguido manter a pose evitando acidentes. Há que levar em conta que não sou nenhum garotinho e, realmente, levantamento de peso em prancha de surf não é o meu esporte favorito e, foi por isso que, numa tarde de “rush”, com as duas crianças no colo (o maior indisposto, adormecia) concluí que deveria descer pela porta da frente após pagar a passagem, Qual não foi a minha surpresa quando o motorista determinou que eu só poderia descer pela porta de trás. Questionei-lhe o motivo. Ele foi enfático:
_ Normas, são normas. Não leu o painel?
Ah! Se já tinha lido! E muitas vezes. Tentei lhe explicar que se tratava de uma exceção. Com duas crianças no colo e mais a sacola, seria humanamente impossível atravessar a roleta. Mas o homem mantinha-se irredutível:
_ A norma é essa: “somente poderá descer pela porta de entrada as gestantes, os obesos e os idosos”.
E eu não me enquadrava em nenhuma dessas. Tentei controlar o peso e os nervos e arrematei:
            _ Tudo bem. Não me enquadro, embora ache que nem precisava. Está na sua frente a minha necessidade. Agora, já que é necessária uma “prerrogativa”, digamos que eu possa ser considerado obeso, afinal tenho além do meu peso, 29 kg, argumentei.
_ Ah! Não é a mesma coisa, disse ele.
_ Realmente, não é, emendei. É bem pior, pois o obeso consegue se equilibrar melhor do que eu.
O homem não cedeu e tive de me lançar à aventura de atravessar o “corredor da sorte”. E isso se sucede todos os dias e fico me perguntando quais os critérios para se definir um obeso, uma gestante e um idoso. Tem idoso que não se permite ser idoso, pois é mais ágil que um mocinho, é atleta e não vê dificuldades em atravessar a roleta. Em contrapartida, tem mulher que se descobre grávida um dia após o atraso menstrual e já quer fazer uso do direito, seja nos ônibus, nas filas de bancos... E tem aquela senhora que nem chegou à casa dos 50, mas a sua debilidade física é tamanha que mal se sustenta em pé. Finalmente, o que é um obeso? É aquele que apresenta 100 gramas acima do peso estimado?
Fico pensando cá com os meus botões: seria a donzela grávida de um mês impedida de atravessar a roleta? E a senhora de 50, seria barrada? E o idoso? Conduzido à porta da frente? E como fica o “obeso” que só tem 1 quilo a mais do peso considerado normal? E se esse pessoal fosse parente do motorista, do cobrador ou pessoa “ilustre”? Na certa, prevaleceria a máxima: “Irmão de barqueiro não paga passagem”.
Coisas de mineiro?
De brasileiro!

                        

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Influência da literatura no comportamento social



               A literatura, assim como todas as artes, tem como função primordial causar certo deleite, espanto, sensação de preenchimento daquilo que sentimos, mas não sabemos como expressá-lo, quer seja em palavras, pinturas, imagens, sons, etc. Porém, um poema, uma crônica, um conto, um romance transportam-nos ao desconhecido, à fantasia, àquilo que não conseguimos nomear, mas que nos dão um sentimento de completude, de transcendência...
            Os livros de literatura, para muitos leitores, são meios de transportes da mente, que lhes permitem, por meio da leitura, como tapetes voadores, penetrar em diversas épocas da história e em diversos mundos, modificando a sua forma de pensar e até influenciando sua maneira de agir, o que reflete no seu relacionamento social.
            Há quem diga que o livro seja capaz de transformar vidas. Inúmeros escritores relatam essa experiência. Muitos se tornaram escritores a partir da leitura de determinado livro. Quantos, em convalescença em uma cama de hospital, ao lerem um livro, passaram a redigir a própria história, ou tornaram-se personagens de seus futuros livros.
O escritor mineiro de Cataguases, Luiz Ruffato, descreve a sua descoberta da literatura, quando, na escola, em sua timidez, tinha por hábito andar encostando-se às paredes. Certo dia, caiu, literalmente, dentro da biblioteca. A bibliotecária não teve dúvidas: colocou-lhe um livro na mão. Em casa, ao abri-lo, as portas do universo se abriram para ele e Ruffato nunca mais  foi o mesmo.
            A leitura de um livro nos faz mergulhar tanto no conteúdo, que somos incapazes de ver e ouvir o que acontece ao redor. Prova disso está num trecho na contracapa do livro: “O Sr. Pip”, do neozelandês, Lhoyd Jones: É impossível fingir que está lendo um livro. Seus olhos irão traí-lo. Assim como sua respiração. Uma pessoa fascinada por um livro simplesmente se esquece de respirar. A casa pode pegar fogo, e o leitor mergulhado num livro só erguerá os olhos quando o papel de paredes estiver em chamas.”
A influência que um livro exerce no leitor é relatada neste livro pela personagem, Matilda, ao ouvir a leitura do livro: “Grandes Esperanças”, de Charles Dickens. A escritora norte-americana, Alice Walker, autora do livro “A Cor Púrpura” transformado em filme, afirma que Charles Dickens, por meio da sua literatura, denunciava o trabalho infantil, e, a partir de então, a sociedade se conscientizou de que a criança tem de brincar e não ser submetida a trabalhos forçados.    
            O escritor Luiz Fernando Veríssimo, apesar de sua escrita humorística, se diz muito tímido. Assim, a escrita foi a maneira que ele encontrou para se revelar, driblando a timidez.
Joaquim Maria Machado de Assis (21/06/1839-29/09/1908), mulato, de origem pobre, era gago. Talvez, por isso, sua obra seja de tamanha magnitude, pois, com receio em se expressar oralmente, devido à gagueira, Machado trouxe para o papel um manancial de riqueza literária, brindando-nos com a sua verve irônica e poética.
            Poder-se-ia dizer, então, que a literatura funciona como um emplasto para as nossas dores do corpo e da alma? Que o diga, Machado de Assis, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
            A escritora Nélida Piñon afirmou certa vez em conferência: depois que li “Crime e Castigo” de Dostoievski, nunca mais fui a mesma.
            Na Biblioteca Pública de Santiago, no Chile, criou-se o “Divã Literário”. Foi contratada uma médica pela instituição, que ao conversar com cada “paciente”, faz um diagnóstico e prescreve o livro mais adequado ao caso. “Ainda não se sabe quais os resultados médicos da ação, mas uma coisa é fato: o número de leitores e de obras emprestadas aumentou consideravelmente.” 
            Logo, é impossível não reconhecer que, de alguma forma, a literatura pode interferir consideravelmente nas relações humanas, modificando o social.

                                                           

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Noite de Inverno




“Se eu não achar cama, virei para a tua, disse o mendigo à morte.”
                             Cláudio Feldman


            Fecha a porta do banheiro e o basculante. Aquece o ambiente trancando o ar entre as quatro paredes e obedece ao ritual de todas as noites que, hoje, se faz muito fria. Despe-se, rapidamente, enquanto a água do chuveiro desce farta e quente inundando o ambiente com uma nebulosa de fumaça. Deixa o corpo sorver desta maravilha alguns segundos, antes de iniciar a higiene diária. Fecha os olhos para que o seu interior também absorva os benfazejos do banho, quando vê o mendigo seminu encolhido sob o jornal, na vã tentativa de dominar o frio que o invade. Tenta, desesperadamente, abrir os olhos para fugir da imagem que o atormenta. Qual o quê! A imagem insiste e persiste dentro da sua retina como se o acusasse do prazer, ora, desfrutado. Repentinamente, a água esfria, gela. Sente um arrepio de dor e horror percorrer-lhe o corpo. Ergue a mão e puxa a felpuda e macia toalha para agasalhar o corpo. Fecha a torneira imediatamente, ao mesmo tempo em que vislumbra, finalmente, duas gotas de lágrimas descendo pelo rosto do homem roto. Sofregamente, leva a toalha aos olhos tentando afastar a imagem que o alucina, mas ela não se desfaz. Impera. Um homem só, numa esquina qualquer, debaixo de uma marquise tenta se proteger do frio que invade seu frágil corpo. A imagem é constante, instigante, penetrante.
            Enxuga-se numa fração de segundos e vai, paulatinamente, colocando as peças sobre o corpo. Finalmente, o sobretudo. Dirige-se à janela e, do 12o andar, seus olhos se encontram aos do outro lá embaixo e sente a hierarquia da diferença. Ele no alto e o outro embaixo, em todos os sentidos.
            Fecha a cortina abruptamente.
            Dirige-se ao seu trono de repouso. Sob uma claridade leve e suave está a larga cama coberta por grosso cobertor à sua espera. Repousa o corpo e o aquece. Fecha os olhos e adormece. Sonha pesadelos. Sente frio. Acorda sobressaltado com o corpo à mostra. Puxa novamente o cobertor e se aquece. A imagem do mendigo revirando-se no chão tentando aplacar o frio, o incomoda. Desperta e volta à janela. A cena se desenrola sob os seus olhos. O homem está encolhido e inerte. Volta para a cama e adormece.
            Na manhã seguinte, acorda com o despertar de sirenes e buzinas. Após abastecer o estômago desce até a rua e chega no momento em que o corpo gélido é retirado da calçada. Sob o jornal nada macio, o homem tentava proteger o corpo, acreditando que driblava a morte.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Menino Bartolomeu






O primeiro livro que li de Bartolomeu Campos de Queirós foi “Os Cinco Sentidos”, recomendado a um dos meus filhos pela escola. Um livro de apenas quinze páginas, mas de uma enorme densidade e pura poesia. Já na primeira frase, o impacto: “Por meio dos sentidos suspeitamos o mundo.”  Na última, a revelação: “Em cada sentido moram outros sentidos.”
Bartolomeu era assim: surpreendente dentro da sua síntese, dos seus silêncios...
            A primeira vez que vi pessoalmente o escritor Bartolomeu foi numa tarde do meio de semana na Lagoa do Nado na região da Pampulha, no início dos anos 2000. Ele fora convidado para dar uma palestra aos alunos de uma escola. Naquela tarde, desabou uma forte chuva e eu com dois filhos menores aguardávamos assentados nas cadeiras dispostas na sala, tendo a nossa frente o escritor Bartolomeu acompanhado do professor Hércules Toledo que, naquela época, escrevia sua tese de doutorado, baseada no livro “Indez” do Bartolomeu, e no livro “A Guerra dos Botões”, do francês Louis Pergaud, conforme fiquei sabendo naquele dia.
            Para a nossa surpresa, os alunos e a professora não apareceram e, de repente, percebi que teria a chance de conhecer e conversar com o escritor sem atrapalhar qualquer evento, uma vez que, confirmada a ausência da turma, ele se dispôs a conversar comigo e com o Hércules por algum tempo.
            Se eu achei um desrespeito a ausência da turma, Bartolomeu não compactuou comigo. Tratou de, imediatamente, demonstrar que compreendia a situação: “choveu muito e é perigoso deslocar tantos alunos para cá, com esse trânsito em Belo Horizonte...”, ao mesmo tempo em que, um pouco descontraído, concordou em ficar conversando com a gente.
            Apresentei-me a ele apenas como mãe de sete filhos, que é a minha maior e mais importante conquista, e como assaz leitora. Fiquei mais o ouvindo trocar ideias com o professor Hércules.
            Logo depois desse encontro, adquiri o livro Indez e solicitei ao Hércules que me informasse o dia da sua defesa, pois eu haveria de comparecer.
            Meses depois, fui à Universidade Federal de Minas Gerais assistir à defesa do Hércules e, naturalmente, eu já havia lido o Indez que muito me encantou. Chamou-me a atenção a escolha dos dois livros. O Indez do Bartolomeu, dedicado à Yeda Prates Bernis, é um livro sobre a infância de um menino do interior, ladeado por terra; esterco de curral; sinos da igreja que, com os seus badalos, anunciam casamentos, agonias e mortes; unguentos, cataplasmas; quitandas da mãe; indez: o ovo que se deixa no galinheiro para a galinha não deixar de botar; amigos de rua... Já o livro, A Guerra dos Botões relata a infância violenta das gangues de rua ... Acredito que por isso a literatura do Bartolomeu tenha sido classificada como infantojuvenil, afinal, em nenhum de seus livros é encontrada a violência tão em voga na literatura moderna...
            Ledo engano. Bartolomeu deve ser lido por pessoas de 7 a 100 anos, tamanha é a identificação que temos com os seus escritos: “Por parte de pai”, “O olho de vidro do meu avô”, “Ler, escrever e fazer conta de cabeça” e tantos outros..
            Anos depois, estive na Faculdade de Educação da UFMG, nas duas vezes em que ele fora convidado para falar aos estudantes e professores de Pedagogia e da EJA (Educação de Jovens e Adultos). Ele sempre reafirmava a importância de uma mudança radical na educação, ilustrando que a criança, ainda pequena, ao começar a frequentar a escola, vai toda animada, de mochila (muitas vezes, pesada) nas costas e doida para adentrar na sala de aula. No horário da saída dos maiores, é aquela correria, pois esses veteranos estão doidos para deixar a escola. E então ele se perguntava: por que os pequenos, quando entram, estão tão encantados com a escola e, quando crescem, estão afoitos para deixar a escola? O que aconteceu neste espaço de tempo que os desencantou?
            No ano de 2011, Bartolomeu esteve no Museu Abílio Barreto, por ocasião do Beaga lê, patrocinado pela Fundação Municipal de Cultura. Era um debate entre ele e o linguista de Campinas-SP, Luiz Percival Leme Britto. Enquanto este discursava sobre os aspectos técnicos da biblioteca: espaço, acervo, quantidade de bibliotecas em bairros, Bartolomeu, pausadamente, falando baixo, pontuava que além do espaço e do acervo, era imprescindível “significar” a biblioteca como um lugar mágico, em que se encontra o prazer de ler, e não como lugar de castigo imposto ao aluno que, de alguma forma, está perturbando o professor em sala de aula, dando a ela a clara conotação de que ler é o castigo que se impõe a quem não quer prestar a atenção nas aulas, além de ser a biblioteca também depósito de livros didáticos e de acolhimento de professores que não estão na ativa por algum motivo.
            Vermelho Amargo é o último livro publicado de Bartolomeu Campos de Queirós, em 2011, e que a crítica considera como literatura adulta. De cunho autobiográfico como os seus livros, Bartolomeu dizia sempre: “eu escrevo sobre o que vivi. Não posso falar do que não vivi, embora toda memória seja inventada.”
            Coincidentemente, o último parágrafo refere-se a sua despedida:
            “Desconheço o depois de minha despedida. Não se caminha sobre a sombra ao entardecer. Ignoro se o remorso nos preservava em suas memórias ou se a paixão lhes presenteou com o esquecimento. A culpa é relativa ao tamanho da memória. Esquecer é desexistir, é não ter havido. Ao me interrogar se tomate ainda há, não me fecho em silêncio. Confirmo que minha primeira leitura se deu a partir de um recado rabiscado pela faca no ar cortando em fatias o vermelho.”
            Adélia Prado disse certa vez: “o que o coração guarda a memória não esquece”.
Bartolomeu Campos de Queirós é inesquecível. “Encantou-se” em 16/1/2012 e ficará para sempre em nossa memória!


                                                                      
           
            

sábado, 15 de setembro de 2012

Busca

Quem mora dentro de mim?
Às vezes, um passarinho,
Que busca o aconchego do ninho.
Às vezes, um gavião,
Que ataca de supetão.

Quem mora dentro de mim?
Às vezes, um anjo dolente,
Que sofre, mas sofre contente.
Às vezes, uma fera carente,
Que machuca muita gente inocente.

Quem mora dentro de mim? 
Às vezes, um ser corajoso,
Que enfrenta o perigo fragoso.
Às vezes, um ente covarde,
Que esconde e omite a verdade.

Quem mora dentro de mim?
Às vezes, uma doce criança,
Que nunca perde a esperança.
Às vezes, um adulto sofrido,
Que faz da vida um alarido.

Quem mora dentro de mim?
Às vezes, Deus em pessoa,
Que tudo suporta e perdoa.
Às vezes, o próprio diabo,
Que tudo massacra num átimo.

Quem mora dentro de mim?
O início de tudo
E o fim.           

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Velhice







                                                
                                                 
                                                                                                     
O que restará na nossa velhice?
Entre agulhas de tricô, jornais e baralhos,
Vejo imperando, maior que tudo,
O silêncio!

O futuro já feito, dispersado.
O passado ressuscitado
Me faz companhia,
E o presente...
Esta ausência do diálogo...

É o conviver constante com o tempo
Que ocupa todos os espaços
E decide não mais sair do lugar,
Prolongando o tique-taque do relógio.

Ah! O que me assusta
Não são as rugas,
O corpo arqueado,
E o espelho denunciando
Uma terceira pessoa em mim.

O que me inflama
É a eterna busca
Do aconchego,
Do murmúrio de palavras
Que trazem o eco do outro,
Do estalo das risadas
Ferindo o ar.

É o estar só em meio ao povo,
É cada um buscando um lugar
Longe
Para não ter de dividir palavras
E deixar os ouvidos de plantão.

O que me assusta na velhice
É o isolamento,
A falta de acasalamento,
É o ensaio para a solidão derradeira!

sábado, 25 de agosto de 2012

Diálogo atual





Família classe alta. Início da noite de sexta-feira. Hora do jantar. Mesa arrumada. Todos reunidos: pai, mãe, filho de 18 e filha de 15. O pai assenta-se à cabeceira da mesa e vê o filho com o visual diferente. No nariz, destaca-se o “piercing” prateado; na boca, o parafuso no lábio, e na orelha, seis furos: três em cada uma, exibindo um verdadeiro “sistema planetário”. O pai olha de soslaio e, em silêncio, se serve do jantar.
Ao final da sobremesa, levanta-se, dirige o olhar a todos da mesa e avisa: “Segunda-feira quero todos reunidos para o almoço.” Deseja à família uma boa noite e se recolhe em seu quarto.
O final de semana transcorre normalmente. Os filhos saem à noite para os compromissos com os colegas, pai e mãe vão ao cinema; no domingo, à casa de parentes que, assustados com o visual do rapaz, questionam os pais da permissão. A mãe, entre sorrisos sem graça, deixa que o pai se manifeste: “Não liguem, não. Coisas da juventude", e à noite todos se encontram para o sono dos justos.
Manhã de segunda-feira, o pai sai para o trabalho, a mãe molha as plantas do jardim de inverno, enquanto a filha se dirige a ela para o beijo de tchau, em direção à escola. O filho permanece dormindo, pois a Faculdade começa às 13h.

Hora do almoço. Mesa arrumada. Família reunida: pai, mãe, filho de 18 e filha de 15. O filho assenta-se no lugar de costume e vê o pai com o visual diferente. Na orelha direita, pende a enorme argola de prata, fazendo par com os curtos cabelos de prata do pai, contrastando com o terno azul de linho e a idade nada jovial do velho senhor. Abobalhado, mas silencioso, permanece o filho e se serve do almoço.
Ao final da sobremesa, levanta-se o pai e dirige o olhar ao filho: “Vou te levar à faculdade hoje”.
O filho, quase que desesperado, suplica: “Não, pai. Não precisa. De jeito nenhum que vou lhe dar esse trabalho. Deixar que desvie do seu caminho, nem pensar...”
_ Faço questão! _ Enfatiza o pai.
O filho ainda tentar fazer o pai mudar de ideia, quando é interrompido pelo pai:
_ Te espero no carro.
Mais que depressa, o filho corre para o banheiro e arranca de qualquer jeito os apetrechos das orelhas, na tentativa desesperada de que o pai faça o mesmo: arranque o brinco.
Pega a mochila e chega esperançoso ao carro, chamando a atenção do pai para a ausência dos seis “brincos”.
O pai se mantém calmo e impassível liga o carro para retirá-lo da garagem.
Durante o trajeto o filho evita encarar qualquer pessoa da rua, temendo encontrar algum conhecido.
Antes da entrada no Campus, o jovem diz: “Falô, pai. Pode parar por aqui. Já tá ótimo. Quebrou um galhão!” E ensaia deixar o carro.
Calmamente, o pai continua dirigindo.
_Vou parar no estacionamento. Faço questão de deixá-lo dentro da sala.
_ Quê isso, pai! Não precisa mesmo. Você vai se atrasar mais ainda”.
_ Não tem problema, estou com tempo hoje.
Descem os dois, e antes que o filho tome a frente, o pai segura-lhe o braço:
_ Espera aí, me conta como está indo nos estudos... _ E caminha ao seu lado.
O filho se recusa a olhar para os lados, mas não consegue evitar os olhares perplexos dos estudantes ao se depararem com a imagem grotesca do seu pai que, indiferente, continua o trajeto.
Já no corredor, o jovem despede-se afoito e entra como um raio no banheiro.
Calmamente, o pai retoma o caminho de volta.
Na manhã seguinte para o café, a família reunida: pai despido da bijuteria, mãe, filho de 18, de cara limpa como veio ao mundo, e filha de 15 dão início a um novo dia.
  O recado havia sido dado!

Fátima Soares Rodrigues


                                                                  





sábado, 18 de agosto de 2012

Metade por inteiro



A estação do ano era o outono. A da vida também. Aos 55 anos, ela vesperava o inverno.
            Era uma sexta-feira 13, dia de Santo Antônio: o santo casamenteiro. De casamento, ela entendia, e muito bem. Duas vezes casada, os dois maridos parecem ter sido escolhidos a dedo. O primeiro, mais jovem do que ela dois anos, foi a primeira paixão da adolescência. Amor muito bem correspondido, amor de alma gêmea. Dele, nasceram três botões de rosas.
            O segundo, muito cobiçado pelas mulheres, mais velho, lhe foi entregue virgem. Padre desde a juventude, abandonou o celibato, quebrando os votos de castidade, para, a ela, dedicar amor completo.
            O mês era a metade do todo: junho. Metade que ela foi a vida inteira. Metade da vida dedicada ao primeiro, e, metade do que viveu, a outro.
            Das decisões tomadas na vida, todas foram certezas. A indecisão não fazia parte do seu dicionário de vida. Pulso forte, palavra que não voltava atrás, ela era, ao mesmo tempo, amada por muitos e odiada por tantos. E, seguia, independentemente de aplausos e vaias.
            Precoce, antes da adolescência, já se aborrecia com a injustiça social, a discriminação racial, a fome de pão e de Deus. Pensou em ser noiva de Cristo, para ficar à frente dessas causas. Mas, logo descobriu que ao invés de criar asas para isso, cortar-lhe-iam as atrofiadas que tinha. Assim, foi a campo sozinha. Então, apareceu o primeiro. Companheiro de lutas, parceiro de alegrias, foi parceiro por inteiro. Moraram na favela para ficarem próximos dos excluídos.
            Com o nascimento das filhas, buscaram lugar menos perigoso, mas não abandonaram os filhos de Deus. De perto, de longe, sempre eram presenças.
            Na igreja que frequentavam, o belo padre, de físico altivo e forte, rosto bonito, firmeza de voz, linda voz que encantava as missas, surgiu, na pureza, a paixão. Paixão recíproca, embora o pecado fosse também o empecilho que se interpunha entre eles. O dela, a jura diante do altar, para o resto da vida. O dele, a promessa, também, feita no altar, para servir eternamente a Deus.
            Mas ela sempre agia por inteiro, e, se ao padre faltassem coragem e força, ela lhe era o esteio. Colocar um ponto final em um casamento com frutos e assumir o amor de um padre, conhecido no Estado e respeitado pelos fiéis, foi a força que o impulsionou ao mesmo.
            O rebuliço, a revolta, o ciúme, a falta, foram fantasmas que se fizeram reais.
            Mas eles não capitularam. Foram.
            Do até então marido, a dor maior não foi o ciúme do rival, mas a perda da esposa.
            Então, ele foi ao fosso. Desceu ao poço, e custou a emergir.
            Quanto ao padre, surpreendeu fiéis que perderam a fé, abandonaram a igreja, e, cognominaram-no de Judas.
            Passou o tempo. Passaram-se anos.
        Quando tudo parecia aquietar os ânimos, a “indesejável” começou a enviar recado. Primeiro sutilmente. Um dia, uma dor aqui. Noutro, outra dor ali. Mas ela ignorava. Lutava feroz e solitariamente em aceitar a nova companheira. Mantinha-se forte, driblava a sorte, e silenciava.
            Até o dia em que não conseguiu silenciar os gritos de dor. A família reunida achegou-se. Assustou-se. A foice já descera, não tinha mais jeito. Já era fim de linha. Batalha perdida.
            O primeiro e o atual, à esquerda e à direita da cama, tais quais os dois ladrões no martírio de Jesus.
            Ela ainda resistiu, digladiou-se com Ela. Não ia entregar os pontos, ainda que o sofrimento não a abandonasse.
            Até que, no Dia dos Namorados, 12/06, os dois ao seu lado, ela pediu para partir. Agora, sozinha. E, sob lágrimas fortes, foi-se.
            Na sexta, 13, dia de Santo Antônio, à hora terça, a urna, ao som arranhado das correntes, desce a terra.
            Juntos, lado a lado, abraçados, o primeiro e o atual. Amigos para sempre. Duas metades que se despedem do inteiro!                       

Fátima Soares Rodrigues                   

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

EU, O MENINO E O CÃO


            Ele seguia pela calçada, segurando o cãozinho no colo. Segurando não era bem o termo, e, sim, abraçando. Um abraço de aconchego, de “não entrego”, de “ele é meu”. Porém, sua missão era entregar o cãozinho a alguém e partir de volta para casa. Na última das hipóteses, se não achasse um dono para o cão, abandoná-lo à sorte e isso seria a morte para o menino.
            O cão ele encontrara na rua, sem eira nem beira. Afeiçoara-se imediatamente a ele. Aquele amor à primeira vista em que os cinco minutos de encontro já representavam uma vida inteira.
            O cãozinho, por sua vez, abandonado ou perdido – quem há de saber? – também identificou o menino como seu dono. Dono não, parceiro de brincadeiras, de trocas de afetos, de cumplicidades. Porém, a mãe fora enfática: “já temos um cão e aqui não cabe dois. Você tem meia hora para se ver livre dele”.
            Imediatamente, o garoto fixa o seu olhar no cãozinho e é capaz de apostar que o pobrezinho entendeu direitinho a frase da mãe: não teria guarita naquela casa. O menino suplica com as lágrimas e aquele olhar pidão dos desesperados à espera de um milagre, pequeno que fosse.
            A mãe, talvez para não se abalar, continua seus afazeres, de costas para a cena, sob a insistente palavra negativa, jogando por terra a esperança do garoto.
            Então, ele busca a coleira novinha, que certa vez comprara para os passeios com o outro cão e ainda não a usara, e circula sobre o pescoço do cãozinho, talvez, para que ele se sinta mais protegido e acredite que, com ela, selava-se a conquista de um novo lar.
            Silenciosamente, o garoto coloca o cãozinho no colo e ganha as ruas do bairro, enquanto a corda da coleira vai roçando o chão, no embalo da caminhada, na identificação que nem existiu, na exigência de entregar o que era tão seu...
            E, então, nos cruzamos na calçada. Quase que escondendo o cão no seu ombro, olha para mim e oferece-o. Não convencida da oferta contra o enorme carinho dedicado ao cachorro, pergunto-lhe o que dissera. E ele, no embate do olhar doloroso da entrega e ao mesmo tempo suplicante para que eu o aceite, me oferece o cão enquanto o aperta em seus braços.
            Para o seu desespero e alívio, eu recuso a oferta. Estou hospedada aqui perto e não moro nesta cidade.
            O cão volta a cabeça para mim ao ouvir a minha voz e parecendo sorrir com a língua de fora e o olhar agradecido por não lhe oferecer o meu colo, segue firme no colo do garoto que parece apertá-lo mais ainda contra o peito.
            Olho ainda uma vez para trás e vejo o garoto seguindo a rua à procura de alguém que abrigue o cãozinho.
            Meia hora depois retorno à rua do encontro e vejo-os do outro lado. Vou seguindo ao encontro deles, ao mesmo tempo em que ele para a minha frente, e, com os olhos embaçados e a voz entrecortada me diz que não encontrou ninguém para ficar com o cãozinho. E é neste momento que me conta a história do encontro com o cão, da recusa da mãe, da coleira, da necessidade da entrega, de ter de romper o laço...
            Olho a coleira vermelha em volta do pescoço do cãozinho. Um nó na garganta ao mirar o cachorro e o menino. De quem sinto mais pena? Do sofrimento do garoto por de ter de perder o seu amiguinho ou do olhar suplicante do cãozinho, pedindo para ficar?
            Sem uma boa solução, sugiro ao menino que bata nas casas que têm cachorro. Quem sabe?
            O sol já começava a se pôr, aumentando a agonia do garoto. Teria de voltar sem o cachorrinho, e, se entregá-lo já o corroia por dentro, abandoná-lo, então, seria mais que um martírio.
            Indefesa e engasgada, não consegui desejar-lhe “boa-sorte”, dando-lhe as costas, enquanto ele seguia a rua com o cãozinho no ombro e a corda da coleira vermelha se arrastando, num constante pedido de socorro...


Fátima Soares Rodrigues