sábado, 31 de outubro de 2015

Engano urbano

    Século vinte e um. Tecnologia avançadíssima, bastando apenas um toque de dedos para clicar algum botão e, de repente, abre-se, à nossa frente, um mundo mágico...
            Contrastando a isso, o básico do básico parece ficar esquecido, relegado a um canto de tanto ser básico, e, assim desaprendemos ou nem aprendemos a lidar com o banal, perdendo-se então o controle de todo controle...
            Caminho pela ladeira com o molho de chaves do apartamento que acabei de receber da imobiliária, a fim de alugá-lo, caso seja do nosso agrado: meu e do meu companheiro.
            Muito embora muitas avenidas já possuam controle de semáforo, para que o pedestre atravesse em “segurança”, além de faixas exclusivas para ônibus, alguns bairros parecem pertencer a outro país, tamanha é sua deficiência básica: falta iluminação nas ruas, redes de esgoto e água, asfalto... faltas essas que favorecem à “sobra” da violência que se espalha na escuridão dos becos, nos assaltos, estupros, assassinatos...
            São 10 horas da manhã de uma radiante quarta-feira de primavera e nós vamos seguindo ruas, virando esquinas até encontrarmos a entrada do prédio.
            Com o molho de chaves na mão, não foi muito difícil achar a pequena chave que abre a portaria. Subimos as escadas e lá está o número do apartamento: 202. Já, a chave da porta confunde-se com outras que se encontram no chaveiro. Porém, estamos com tempo, e, assim, vamos testando pacientemente a chave que abrirá a porta.
            De repente, a porta dos fundos do mesmo apartamento abre-se abruptamente e um homem com um calibre 38 na mão, avança em nossa direção, enquanto berra:
            _ Parados aí! Como se atrevem a abrir o meu apartamento?
           Ainda não sei descrever, ao certo, a sensação de pânico que nos invadiu. Mas já era capaz de sentir a bala do revólver estilhaçando nosso corpo e o sangue rolando escada abaixo.
           A voz para a explicação teve de ser arrancada à força de dentro da garganta, já que o susto a sufocara:
       _ Peraí, moço, somos gente boa! Recebemos a chave da imobiliária e viemos conhecer o apartamento para alugá-lo...
            _ Como é que é? Alugar o apartamento que aluguei há um mês?
            _ O senhor já mora aí?
            _ Claro! O que eu estaria fazendo lá dentro se não morasse aqui?
            _ Bem, nesse caso, entregaram-nos a chave do apartamento errado. O senhor sabe se tem outro apartamento aqui para alugar?
            _ Não tem. Tenho certeza.
            Bruscamente ele tomou o molho de chaves da nossa mão e buscou conferir se alguma chave abria a sua porta. Achou e a abriu.
            Não acreditou. Nem nós acreditamos.
            Ele, por saber da insegurança em que se encontrava, achando-se seguro dentro de casa, ao menos.
           Nós, por saber que poderíamos ter sido mortos ao nos confundir com um assaltante, quando apenas buscávamos por mais segurança.
           Estupefatos ao devolver o molho de chaves e dedicar à imobiliária alguns desaforos, fomos surpreendidos pela funcionária que nos afirmou que enganos como esse acontecem vez por outra.
           Esse tipo de erro é urbano, e desumano!

            “Bala perdida mata criança no Rio.”
            “Brasileiro é morto por engano, ao ser confundido com terrorista.”
            “Pedreiro fica preso por engano durante dois anos.”
            “Dentista negro confundido com traficante é assassinado pela polícia.”  



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Porque o tempo urge!

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Eles chegaram num caminhão, desceram com a grande escada, a serra e todos os apetrechos necessários. Eram três homens. Tocaram meu interfone e pediram que eu retirasse o carro que estava estacionado em frente. Era para evitar acidente.
            Ao me dirigir ao carro, dei com os três armados em frente à árvore.
      Era uma árvore gigantesca, talvez, centenária. Informaram-me de que se tratava de uma Saboneteira, árvore cujas sementes são usadas para fazer sabão e contas de colares.
          Questionei-lhes o porquê da derrubada. Disseram-me que o morador constatara, junto com um engenheiro, que o pé da árvore estava infestado de cupins, o que poderia causar um grave acidente.
       De repente, ao contemplar a árvore, vejo uma casa de joão-de-barro construída entre dois troncos. Já estava pronta.
           Imediatamente, peço a eles que não comecem a trabalhar a serra antes de retirar a casinha.
           _ Deem-me a casinha inteira. Soa não como uma ordem, mas uma súplica.
           Os três param e me encaram. Talvez, não acreditem que às 7h30 de uma manhã de outono, travestida ainda de verão do mês de abril, ensolarada, aos 24º, uma mulher, levando filhos para a escola, atrase a saída para se preocupar com uma casa de joão-de-barro. Mas, imediatamente, providencio para que meu filho mais velho leve a irmã à escola, enquanto tento transferir a moradia do pássaro.
           _ Por favor, não deixem a casinha quebrar. Retire-a delicadamente, que vou colocá-la em uma árvore dentro do meu jardim.
          Os funcionários da prefeitura entendem perfeitamente o meu pedido, embora me informem que, uma vez tocada, os pássaros não mais a habitarão. Sentem cheiro de invasores, temem se tornarem prisioneiros...
         Mesmo assim, peço a casinha, na esperança de que, passado o tempo, banhada a casa pela chuva retirando o toque humano, o pássaro volte a habitá-la.
        Colocam a extensa escada apoiada à árvore, e um deles vai escalando-a, E eis que vejo o proprietário da casinha parado em seu topo, demarcando o seu espaço.
            Peço ao funcionário que não o assuste. Suba devagar.
            Paciente, o rapaz me ouve, e sobe lentamente, até que a sua sombra, embaçando o sol, espanta o pássaro que pousa num fio do poste próximo à árvore e observa o homem da prefeitura retirando o seu lar, construído com a paciência de quem, mesmo não sabendo o que é esperança, não desiste. Sob o sol, a chuva e o vento, diariamente, vai longe buscando os gravetos, o barro, incansavelmente até dá-lo por terminado. É o ninho, o aconchego e proteção dos filhotes e da fêmea.
            Ao retirar com cuidado a casa por inteiro, peço que desça devagar, a fim de que o pássaro veja onde a depositaremos, na esperança de que ele não perca a esperança de tê-la inteira novamente, ainda que ele não saiba o que seja esperança...
       E, então, eu a recebo das mãos do funcionário, que agradeço comovida. Pesada, perfeita, benfeita. Verdadeira obra de artista!
        Com passos lentos, olhando constantemente para o pássaro que permanece no fio, tento-lhe mostrar que sou amiga, não vou destruir sua casa, tampouco transformá-la em armadilha para prendê-lo, e, então, escolho a árvore mais próxima da rua, mesmo dentro do meu jardim. A árvore, embora demarcada pela grade da casa, abre-se ao céu, sem telhado circundando-a, é a mais alta e com tronco mais grosso, capaz de suportar ventos e tempestades, sustentando a casa, e, deposito com cuidado a casinha entre um nó de tronco, mais no alto, protegida dos gatos, dos homens, e, como criança, olho para o pássaro ao mesmo tempo que, com o dedo, aponto-lhe a casa.
          Os dias passam e não vejo mais o pássaro.
        Certa noite, a chuva cai, e, na manhã seguinte, ao abrir a porta que dá para o jardim, para a minha alegria, eis que vejo um joão-de-barro no topo da sua casinha, demarcando espaço, bicando-a, talvez, como um beijo de alegria, e percebo o começo do que parecia ser um fim...

                        

domingo, 26 de julho de 2015

"Desculpem-nos pelo engano"

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No dia 22/7/05, a polícia britânica anunciou ao mundo que havia exterminado um possível terrorista na estação de Stockwell, no sul de Londres. Para surpresa do mundo e perplexidade dos brasileiros, o suspeito morto, de 27 anos, era brasileiro, mineiro da cidade de Gonzaga e estava a caminho do trabalho. Jean Charles de Menezes vivia há cerca de quatro anos em Londres, trabalhando como eletricista e foi confundido pela polícia com um terrorista devido “às roupas que usava e atitudes suspeitas.”.
            No dia 6/7/08, PMs, no Rio, atiraram contra o carro em que estava João Roberto Amorim Soares, 3 anos, sua mãe e seu irmão. Atingido na nuca, João morreu no dia seguinte. Os policiais disseram que confundiram o carro com outro veículo que estava sendo perseguido.
            No dia 11/7/08, o estudante Marcelo Francisco Silva de Melo, 12 anos, foi baleado no rosto durante tiroteio entre traficantes e PMs na favela da Vila Prudente (zona leste de São Paulo). Após a cirurgia, a bala ficou alojada no maxilar do garoto.
            No dia 13/7/08, Rafaeli Ramos Lima, 20 anos, morreu após ser baleada por engano por PMs em Porto Amazonas (PR). O amigo, Diogo Soldi, 21 anos, que estava com ela em um Gol, ficou ferido. Os PMs consideraram que um acidente entre o carro dos jovens e o veículo da polícia fora proposital para facilitar a fuga de outro carro que estava sendo perseguido.
            No dia 15/7/08, o administrador de empresas, Luiz Carlos Soares da Costa, 35 anos, mantido refém no próprio carro por um bandido que fugia da polícia, foi morto ao final de perseguição policial após ter o carro atingido por ao menos dez tiros disparados por policiais militares no Rio de Janeiro. Luiz Carlos foi levado ao hospital pelos policiais, juntamente ao bandido atingido, e, segundo funcionários do hospital, os policiais teriam dito que o atendimento não precisava ser feito às pressas, por que os dois eram bandidos.
            A pergunta que não quer calar: por que, em casos como esses, atira-se primeiro, para perguntar depois? E por que, em crimes especiais, que envolvem políticos, banqueiros e poderosos, pergunta-se, pergunta-se, pergunta-se e a punição nunca acontece?     
            Não é concebível que em pleno século 21, na era da globalização, em que não há mais distância, já que a tecnologia mundial nos permite conversar e ver a imagem do outro imediatamente refletida na tela do computador em qualquer parte do mundo; quando a clonagem humana já não é mais impossível; quando a sofisticação e tecnologias avançadas tornam o que era considerado impossível, mais do que possível, um ser humano seja morto por engano e pela polícia, que, além de bem equipada, deveria contar com a inteligência e senso de justiça, coisas que nem as mais modernas e poderosas máquinas possuem.
Lamentável é concluir que o avanço do progresso é proporcional ao aumento da desumanidade mundial!


quinta-feira, 25 de junho de 2015

Fernando Brant - Um coração aberto!



“Casa Aberta” é o nome do livro do compositor e cronista Fernando Brant, falecido em 12/6/2015, Dia dos Namorados. Duas coincidências – para quem acredita nelas –, ou dois mistérios – para os que neles acreditam. O título “Casa Aberta” é uma coletânea de crônicas do Fernando, publicadas no Caderno Cultura do Jornal Estado de Minas. A capa do livro (Sebastião Nunes) é ilustrada com várias chaves e, na minha leitura, indica que, sendo a “casa” de Fernando, “aberta”, qualquer chave poderá abri-la.
            Conhecia Fernando Brant por meio das letras de suas canções que tanto me marcaram. Porém, nunca conversei com ele. Vi-o em 2010, na Casa dos Contos, entre amigos, recebendo o escritor português Cunha de Leiradella que visitava o Brasil, e, depois, em 2012, no “Bate-papo com o leitor” na Academia Mineira de letras, onde adquiri seu livro. Mas conhecia a alma dele pelas letras de músicas, crônicas e pelas respostas às minhas mensagens. Fato não muito comum com escritores e artistas que, às vezes, só respondem quando os elogiamos. Mas Fernando não se restringia a isso. Independentemente da mensagem, elogio, comentário sobre a crônica, ou outro assunto, ele nunca ignorou o leitor.  Guardo com carinho várias respostas gentis desse homem que tinha um coração aberto. Sem estrelismo, tinha com qualquer ser humano (e por que não dizer, com tudo que é vivo: plantas, animais...) um respeito profundo por tudo que exalava vida. Fernando fez de suas palavras sua vida. Coerente com o que pensava, o que falava, o que escrevia e o que vivia.
            Dentre as suas virtudes, talvez esta seja a maior: a simplicidade. Nivelava as pessoas. Um homem de coração aberto.
            No dia em que se comemora o amor, Fernando se despede deste mundo. Ele cantou o amor em todas as suas acepções: de casal, de família, de amigos, de avô, retratados no livro “Casa Aberta”, Edições Dubolsinho, 2011.
            Numa época em que a literatura enaltece a violência e o sexo, tornando-nos cada vez mais pobres literariamente, ter e ler “Casa Aberta” é guardar eternamente as palavras de quem era o que pensava, o que vivia.
            A crônica “Domingo dos Pais”, página 19, talvez resuma aquilo que Fernando Brant gostaria de dizer a todos quando partiu:
            “... e eu fico imaginando palavras que consolem os que estão desconsolados. O que vale mesmo é o abraço e o carinho que recebemos e que guardamos para todos os nossos dias. O que vale é andarmos juntos, descobrir os que nos são afins e aproveitar ao máximo a companhia, a amizade e o amor.
            Meu pai tinha uma predileção especial por uma canção nossa, “Vida”: ‘o amor bateu na porta/e eu de dentro respondi/minha casa é aberta/pode entrar, estou aqui/ o rio passava seus peixes/ no fundo de meu quintal/ meu pai me olhava sorrindo/ minha mãe e meus irmãos/ o amor bateu de novo/ e eu de novo respondi/ entra que a casa é sua/ eu só quero ser feliz/ a lua trazia no vento/ meus filhos e minha mulher/ amigos chegavam dizendo/ que a vida é isso aí.’
            Que, na eternidade, estejam todas as portas abertas para você, Fernando!


sexta-feira, 27 de março de 2015

A PORTA






O que pode uma porta fechar
além dos espaços conformes?
Pode uma porta fechar
as esperanças contidas
 na mente aberta dos jovens?

Pode uma porta fechar
as bocas famintas dos pobres?
E pode uma porta fechar
as frestas fortes dos nobres?

E uma porta, por acaso,
é fechada a pessoas esnobes?

A porta comporta a rota...
Morta!



sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A Manoel de Barros

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A poesia entrou em minha infância
E eu não sabia.
Correr atrás de passarinho,
Guardar a pena de uma galinha,
E, com a tinta dos meus sonhos,
Desenhar uma lua linda.

Apreciar a serenidade
De um cavalo,
Decifrando suas palavras
No sussurro dos beiços,
No olhar de vassalo...

Desconhecendo medos,
Postar-me diante de bois,
Vestida de vermelhos...
Comer “azedinhas” em matos,
Sem me preocupar com
A urina dos ratos...

Quando, finalmente, cresci,
E abandonei sua companhia,
Descobri-me vazia de mim...
  
Hoje, tento encontrá-la
Na rotina do dia a dia,
Nos compromissos inadiáveis,
Na folha que tomba no jardim...

Longe ou perto, ela me sorri,
E, com o dedo em meu peito,
Aponta docemente:
                                – Estou aqui!                                  

domingo, 18 de janeiro de 2015

Depois que eles crescem





Quando o futuro
chegar à independência,
e o lar paterno
não for mais sua residência,
a solidão será a eterna companhia,
e o silêncio reinará em minha vida.

Não mais ouvirei
conversas ao redor da mesa
farta do pão e da água benfazeja,
pois, para mim,
a alegria verdadeira
não tem nenhuma relação com a cerveja.

Não mais gargalhadas
sem qualquer compromisso,
conversa séria,
às vezes, ao pé do ouvido,
ou a certeza de um ombro amigo.

Serei do tempo
fiel e eterno escravo.
Deixarei ao vento
palavras e um sorriso raro.
E o meu lamento...
é um vazio que no peito trago.