No final do
inverno, antecedendo a primavera, no mês de agosto - que para muitos ainda
cheira a desgosto - há uma mistura de estações, quando o frio dá lugar ao calor
em alguns dias, e algumas árvores já se enchem de flores, embelezando a paisagem,
enquanto outras ainda forram o chão de folhas secas, preparando-se para florir
quando a primavera realmente chegar.
Era uma manhã de terça-feira, no
último dia do mês de agosto, época em que o sol disputa com o vento, ora
esquentando o dia, ora, às vezes, repentinamente, o vento surge e o esfria,
quando, caminhando por uma rua silenciosa, vi aquele senhor, aparentando
sessenta e cinco anos. Altura mediana, magro, dentro de um casaco cinza escuro,
calça preta, uma boina escura, tapando-lhe parte da testa. Carregava uma pasta
preta.
De frente à lixeira sobreposta na
calçada, ele parou. Apoiou a pasta sobre o joelho dobrado, e, cuidadosamente,
retirou com carinho um envelope de carta. Sim, só podia ser uma carta. Abriu
vagarosamente o envelope, retirou a folha, desdobrando-a e pude perceber uma
folha de caderno manuscrita e amarelada pelo tempo, talvez. Ergueu a folha
diante dos óculos e manteve-se em silêncio por alguns instantes. Pude perceber
seus olhos percorrendo as linhas, e eu seria capaz de descrever todas as
alterações causadas pelas feições que se estampavam em seu rosto. Depois,
dobrou-a, devolvendo-a ao envelope, ao mesmo tempo em que enxugava com o dorso
da mão, uma lágrima teimosa que insistia em cair no canto do olho direito.
Fitando a lixeira, permaneceu ainda
alguns segundos com o envelope suspenso no ar, no embate da decisão difícil de
se desfazer daquela que o acompanhou por tanto tempo! A boca da lixeira que
abrigava papéis sujos, copos descartáveis, tocos de cigarro e tantas sujeiras, deprimia-o.
Toda separação deveria ser ao menos decente, já que sempre abandonamos um pouco
do que fomos, seja no rompimento com alguém, seja se desfazendo de coisas que
personificamos de alguma forma, por meio do carinho que nutrimos por elas, por
nos acompanharem, ou fazerem parte do nosso corpo. Mas sabia que teria de ser
assim. Respirou fundo e depositou carinhosamente o envelope em meio ao lixo.
Não teve coragem de rasgá-la. A carta já tomara corpo. Quantas vezes a
acariciou com os dedos, levou-a aos lábios, no beijo suave, apertou-a contra o
peito na saudade! Rasgá-la seria machucá-la. Ainda ficou mais alguns instantes
fitando o envelope no lixo, antes de lhe dar, definitivamente, as costas e
partir irresoluto daquele lugar.
Eu o observava de longe.
O que teria naquela carta? Seria uma
antiga carta de amor? Por que então estaria se desfazendo dela? Quem sabe,
naquele dia, o amor secreto até então, deixou de existir e a amada partiu com
outro, deixando-o imerso na desilusão, abreviando para sempre a longa espera de
tantos anos? Ou seria a carta um segredo que alguém lhe confiara, e, que,
agora, por motivos que desconheço, não pertencia mais somente a ele e, por
isso, não havia necessidade de mantê-lo? Quem sabe, seria um poema escrito por
ele, dedicado a alguém há tantos anos e que lhe fora devolvido, frustrando a
sua paixão? Quem sabe?
O certo é que livrar-se da carta não
foi tarefa fácil para aquele homem.
Abandoná-la na lixeira significava
deixar lá um pouco de si mesmo.
Durante muitos anos, talvez a carta
fora companheira e cúmplice de um mesmo segredo. Talvez fosse fonte de
esperança em momentos nefastos. Quiçá, base de sustentação que o mantinha
vivo...
Agora, o fio que a ligava a ele se
rompia. Acabou. Abandoná-la e seguir em frente. Essa era a solução. Porém,
embora fosse um simples papel, quão vivas são as palavras! Personificam-se,
tomam forma na folha, num cartão de aniversário, de pêsames... Traz-nos, de
volta, pessoas, imagens, músicas, perfumes...
Num livro, então, cada virar de folha
é presença, presente, emoção!
Foi-se o papel. Ficam, gravadas na
memória e impressas no coração, as palavras!