sábado, 25 de agosto de 2012

Diálogo atual





Família classe alta. Início da noite de sexta-feira. Hora do jantar. Mesa arrumada. Todos reunidos: pai, mãe, filho de 18 e filha de 15. O pai assenta-se à cabeceira da mesa e vê o filho com o visual diferente. No nariz, destaca-se o “piercing” prateado; na boca, o parafuso no lábio, e na orelha, seis furos: três em cada uma, exibindo um verdadeiro “sistema planetário”. O pai olha de soslaio e, em silêncio, se serve do jantar.
Ao final da sobremesa, levanta-se, dirige o olhar a todos da mesa e avisa: “Segunda-feira quero todos reunidos para o almoço.” Deseja à família uma boa noite e se recolhe em seu quarto.
O final de semana transcorre normalmente. Os filhos saem à noite para os compromissos com os colegas, pai e mãe vão ao cinema; no domingo, à casa de parentes que, assustados com o visual do rapaz, questionam os pais da permissão. A mãe, entre sorrisos sem graça, deixa que o pai se manifeste: “Não liguem, não. Coisas da juventude", e à noite todos se encontram para o sono dos justos.
Manhã de segunda-feira, o pai sai para o trabalho, a mãe molha as plantas do jardim de inverno, enquanto a filha se dirige a ela para o beijo de tchau, em direção à escola. O filho permanece dormindo, pois a Faculdade começa às 13h.

Hora do almoço. Mesa arrumada. Família reunida: pai, mãe, filho de 18 e filha de 15. O filho assenta-se no lugar de costume e vê o pai com o visual diferente. Na orelha direita, pende a enorme argola de prata, fazendo par com os curtos cabelos de prata do pai, contrastando com o terno azul de linho e a idade nada jovial do velho senhor. Abobalhado, mas silencioso, permanece o filho e se serve do almoço.
Ao final da sobremesa, levanta-se o pai e dirige o olhar ao filho: “Vou te levar à faculdade hoje”.
O filho, quase que desesperado, suplica: “Não, pai. Não precisa. De jeito nenhum que vou lhe dar esse trabalho. Deixar que desvie do seu caminho, nem pensar...”
_ Faço questão! _ Enfatiza o pai.
O filho ainda tentar fazer o pai mudar de ideia, quando é interrompido pelo pai:
_ Te espero no carro.
Mais que depressa, o filho corre para o banheiro e arranca de qualquer jeito os apetrechos das orelhas, na tentativa desesperada de que o pai faça o mesmo: arranque o brinco.
Pega a mochila e chega esperançoso ao carro, chamando a atenção do pai para a ausência dos seis “brincos”.
O pai se mantém calmo e impassível liga o carro para retirá-lo da garagem.
Durante o trajeto o filho evita encarar qualquer pessoa da rua, temendo encontrar algum conhecido.
Antes da entrada no Campus, o jovem diz: “Falô, pai. Pode parar por aqui. Já tá ótimo. Quebrou um galhão!” E ensaia deixar o carro.
Calmamente, o pai continua dirigindo.
_Vou parar no estacionamento. Faço questão de deixá-lo dentro da sala.
_ Quê isso, pai! Não precisa mesmo. Você vai se atrasar mais ainda”.
_ Não tem problema, estou com tempo hoje.
Descem os dois, e antes que o filho tome a frente, o pai segura-lhe o braço:
_ Espera aí, me conta como está indo nos estudos... _ E caminha ao seu lado.
O filho se recusa a olhar para os lados, mas não consegue evitar os olhares perplexos dos estudantes ao se depararem com a imagem grotesca do seu pai que, indiferente, continua o trajeto.
Já no corredor, o jovem despede-se afoito e entra como um raio no banheiro.
Calmamente, o pai retoma o caminho de volta.
Na manhã seguinte para o café, a família reunida: pai despido da bijuteria, mãe, filho de 18, de cara limpa como veio ao mundo, e filha de 15 dão início a um novo dia.
  O recado havia sido dado!

Fátima Soares Rodrigues


                                                                  





sábado, 18 de agosto de 2012

Metade por inteiro



A estação do ano era o outono. A da vida também. Aos 55 anos, ela vesperava o inverno.
            Era uma sexta-feira 13, dia de Santo Antônio: o santo casamenteiro. De casamento, ela entendia, e muito bem. Duas vezes casada, os dois maridos parecem ter sido escolhidos a dedo. O primeiro, mais jovem do que ela dois anos, foi a primeira paixão da adolescência. Amor muito bem correspondido, amor de alma gêmea. Dele, nasceram três botões de rosas.
            O segundo, muito cobiçado pelas mulheres, mais velho, lhe foi entregue virgem. Padre desde a juventude, abandonou o celibato, quebrando os votos de castidade, para, a ela, dedicar amor completo.
            O mês era a metade do todo: junho. Metade que ela foi a vida inteira. Metade da vida dedicada ao primeiro, e, metade do que viveu, a outro.
            Das decisões tomadas na vida, todas foram certezas. A indecisão não fazia parte do seu dicionário de vida. Pulso forte, palavra que não voltava atrás, ela era, ao mesmo tempo, amada por muitos e odiada por tantos. E, seguia, independentemente de aplausos e vaias.
            Precoce, antes da adolescência, já se aborrecia com a injustiça social, a discriminação racial, a fome de pão e de Deus. Pensou em ser noiva de Cristo, para ficar à frente dessas causas. Mas, logo descobriu que ao invés de criar asas para isso, cortar-lhe-iam as atrofiadas que tinha. Assim, foi a campo sozinha. Então, apareceu o primeiro. Companheiro de lutas, parceiro de alegrias, foi parceiro por inteiro. Moraram na favela para ficarem próximos dos excluídos.
            Com o nascimento das filhas, buscaram lugar menos perigoso, mas não abandonaram os filhos de Deus. De perto, de longe, sempre eram presenças.
            Na igreja que frequentavam, o belo padre, de físico altivo e forte, rosto bonito, firmeza de voz, linda voz que encantava as missas, surgiu, na pureza, a paixão. Paixão recíproca, embora o pecado fosse também o empecilho que se interpunha entre eles. O dela, a jura diante do altar, para o resto da vida. O dele, a promessa, também, feita no altar, para servir eternamente a Deus.
            Mas ela sempre agia por inteiro, e, se ao padre faltassem coragem e força, ela lhe era o esteio. Colocar um ponto final em um casamento com frutos e assumir o amor de um padre, conhecido no Estado e respeitado pelos fiéis, foi a força que o impulsionou ao mesmo.
            O rebuliço, a revolta, o ciúme, a falta, foram fantasmas que se fizeram reais.
            Mas eles não capitularam. Foram.
            Do até então marido, a dor maior não foi o ciúme do rival, mas a perda da esposa.
            Então, ele foi ao fosso. Desceu ao poço, e custou a emergir.
            Quanto ao padre, surpreendeu fiéis que perderam a fé, abandonaram a igreja, e, cognominaram-no de Judas.
            Passou o tempo. Passaram-se anos.
        Quando tudo parecia aquietar os ânimos, a “indesejável” começou a enviar recado. Primeiro sutilmente. Um dia, uma dor aqui. Noutro, outra dor ali. Mas ela ignorava. Lutava feroz e solitariamente em aceitar a nova companheira. Mantinha-se forte, driblava a sorte, e silenciava.
            Até o dia em que não conseguiu silenciar os gritos de dor. A família reunida achegou-se. Assustou-se. A foice já descera, não tinha mais jeito. Já era fim de linha. Batalha perdida.
            O primeiro e o atual, à esquerda e à direita da cama, tais quais os dois ladrões no martírio de Jesus.
            Ela ainda resistiu, digladiou-se com Ela. Não ia entregar os pontos, ainda que o sofrimento não a abandonasse.
            Até que, no Dia dos Namorados, 12/06, os dois ao seu lado, ela pediu para partir. Agora, sozinha. E, sob lágrimas fortes, foi-se.
            Na sexta, 13, dia de Santo Antônio, à hora terça, a urna, ao som arranhado das correntes, desce a terra.
            Juntos, lado a lado, abraçados, o primeiro e o atual. Amigos para sempre. Duas metades que se despedem do inteiro!                       

Fátima Soares Rodrigues                   

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

EU, O MENINO E O CÃO


            Ele seguia pela calçada, segurando o cãozinho no colo. Segurando não era bem o termo, e, sim, abraçando. Um abraço de aconchego, de “não entrego”, de “ele é meu”. Porém, sua missão era entregar o cãozinho a alguém e partir de volta para casa. Na última das hipóteses, se não achasse um dono para o cão, abandoná-lo à sorte e isso seria a morte para o menino.
            O cão ele encontrara na rua, sem eira nem beira. Afeiçoara-se imediatamente a ele. Aquele amor à primeira vista em que os cinco minutos de encontro já representavam uma vida inteira.
            O cãozinho, por sua vez, abandonado ou perdido – quem há de saber? – também identificou o menino como seu dono. Dono não, parceiro de brincadeiras, de trocas de afetos, de cumplicidades. Porém, a mãe fora enfática: “já temos um cão e aqui não cabe dois. Você tem meia hora para se ver livre dele”.
            Imediatamente, o garoto fixa o seu olhar no cãozinho e é capaz de apostar que o pobrezinho entendeu direitinho a frase da mãe: não teria guarita naquela casa. O menino suplica com as lágrimas e aquele olhar pidão dos desesperados à espera de um milagre, pequeno que fosse.
            A mãe, talvez para não se abalar, continua seus afazeres, de costas para a cena, sob a insistente palavra negativa, jogando por terra a esperança do garoto.
            Então, ele busca a coleira novinha, que certa vez comprara para os passeios com o outro cão e ainda não a usara, e circula sobre o pescoço do cãozinho, talvez, para que ele se sinta mais protegido e acredite que, com ela, selava-se a conquista de um novo lar.
            Silenciosamente, o garoto coloca o cãozinho no colo e ganha as ruas do bairro, enquanto a corda da coleira vai roçando o chão, no embalo da caminhada, na identificação que nem existiu, na exigência de entregar o que era tão seu...
            E, então, nos cruzamos na calçada. Quase que escondendo o cão no seu ombro, olha para mim e oferece-o. Não convencida da oferta contra o enorme carinho dedicado ao cachorro, pergunto-lhe o que dissera. E ele, no embate do olhar doloroso da entrega e ao mesmo tempo suplicante para que eu o aceite, me oferece o cão enquanto o aperta em seus braços.
            Para o seu desespero e alívio, eu recuso a oferta. Estou hospedada aqui perto e não moro nesta cidade.
            O cão volta a cabeça para mim ao ouvir a minha voz e parecendo sorrir com a língua de fora e o olhar agradecido por não lhe oferecer o meu colo, segue firme no colo do garoto que parece apertá-lo mais ainda contra o peito.
            Olho ainda uma vez para trás e vejo o garoto seguindo a rua à procura de alguém que abrigue o cãozinho.
            Meia hora depois retorno à rua do encontro e vejo-os do outro lado. Vou seguindo ao encontro deles, ao mesmo tempo em que ele para a minha frente, e, com os olhos embaçados e a voz entrecortada me diz que não encontrou ninguém para ficar com o cãozinho. E é neste momento que me conta a história do encontro com o cão, da recusa da mãe, da coleira, da necessidade da entrega, de ter de romper o laço...
            Olho a coleira vermelha em volta do pescoço do cãozinho. Um nó na garganta ao mirar o cachorro e o menino. De quem sinto mais pena? Do sofrimento do garoto por de ter de perder o seu amiguinho ou do olhar suplicante do cãozinho, pedindo para ficar?
            Sem uma boa solução, sugiro ao menino que bata nas casas que têm cachorro. Quem sabe?
            O sol já começava a se pôr, aumentando a agonia do garoto. Teria de voltar sem o cachorrinho, e, se entregá-lo já o corroia por dentro, abandoná-lo, então, seria mais que um martírio.
            Indefesa e engasgada, não consegui desejar-lhe “boa-sorte”, dando-lhe as costas, enquanto ele seguia a rua com o cãozinho no ombro e a corda da coleira vermelha se arrastando, num constante pedido de socorro...


Fátima Soares Rodrigues