Não por acaso nasci em Belo Horizonte, mas
por destino, confirmado depois pelo meu retorno, após dez anos de residência em
São Paulo. E, por eu estar ausente, mais presente Belo Horizonte se fez em minha
memória, principalmente, porque vínhamos de férias todos os anos.
As
lembranças do Bairro Floresta tornavam-se, cada dia, mais longínquas, dado o
tempo que se distanciava.
Deixei
Belo Horizonte aos quatro anos de idade, com destino à capital paulista. Nessa
idade, conheci o significado de saudade e já tinha, no olhar, visões de
passado.
Na
bagagem fonética, “uai” e “trem” faziam parte do meu vocabulário, ironizados
pelos paulistas. Lá, a bisnaga era bengala, e o balão, bexiga. Não se tomava
“bomba” na escola e, sim, era reprovado. A recuperação era segunda época, e
prova era sabatina, ainda que não acontecesse aos sábados.
Nas
férias de julho e dezembro, eu partia com a família para a capital mineira,
onde os parentes residiam. Os passeios ao centro da cidade davam-se a pé para
admirarmos as paisagens. Inesquecíveis os carrinhos de frutas nas esquinas,
exalando os cheiros de abacaxi e laranjas descascadas na hora, pela manivela
manual que, artisticamente, retirava a casca por inteiro e eu a rodava, recitando
o abecedário, aguardando que ela se arrebentasse, revelando-me a letra do nome
daquele que seria, futuramente, o meu escolhido.
Descendo
a Rua Tamóios, em direção à Igreja São José, atravessávamos a arborizada Av.
Afonso Pena e ganhávamos o Viaduto de Santa Tereza. Imponente, majestoso,
impunha-se, a mim, como passarela, sendo os arcos à esquerda e à direita
lanças, num crescente e decrescente, abrindo-me passagem...
À
noite, com seus postes antigos iluminando-o, mais parecia uma ponte flutuante.
Via de mão-dupla, assim como a vida, sempre ligou o passado ao futuro – o
centro ao bairro –, num constante ir e vir, numa ascendência e descendência nos
seus arcos parabólicos.
O
viaduto construído sobre a linha férrea e o Rio Arrudas, como eles, tem por
missão a travessia. O início e o final se confundem, dependendo da direção que
se toma. Assim, também, é a vida. Onde começa? Onde termina? Seria a vida o
início, e a morte o seu final? Quem sabe a morte seja realmente o início da
vida? Assim, também, são as estações de trem: é sempre início para quem parte,
como final para quem chega. Porém, o contrário também se dá...
A
verdade é que o Viaduto de Santa Tereza ligava dois mundos diferentes. No
centro, apesar daquela época, a vida já fervilhava e lá as pessoas se
aglomeravam. Depois do Viaduto, em direção ao bairro, a calma era restaurada, e
a vida transcorria leve e mais silenciosa.
As
ruas dos bairros, desprovidas do progresso atual, tornavam-se pátios das
brincadeiras, nos quais bolas deslizavam num vaivém, nas peladas e jogos de
queimada das tardes que escorriam inundadas apenas com os gritos das crianças,
sem barulho de motores, buzinas...
À
noite, eram palcos de conversas no portão, ladeado por cadeiras nas calçadas.
No
edifício em que morei, Ribeiro de Rezende, na Rua Tamóios, durante dez anos,
dois personagens faziam parte do meu dia a dia. O primeiro, síndico do prédio,
descia comigo no elevador quase todas as manhãs. Admirava-me ao ouvi-lo me
cumprimentar: “Bom-dia!”
Que
linda voz tinha aquele homem! E que simpatia! Lembro-me de que, aos 18 anos,
quando comecei a frequentar o curso de Letras, na UFMG, que, naquela época,
funcionava na FAFICH, na Rua Carangola, adquiri uma mochila marrom timbrada:
Letras-UFMG. O ilustre vizinho perguntava-me se eu estava gostando do curso, se
eu gostava de literatura, de poesia... e, eu, ainda ignorante de muitos ícones
literários mineiros daquela época, respondia a ele monossilabicamente.
O
outro vizinho morava no último andar: 12º. Um senhor baixo, de cabeça branca,
magro e muito silencioso. Soube que morava sozinho e tinha um lindo piano que
tocava diariamente. Certo dia, no elevador, perguntei se ele dava aula de
piano, pois gostaria muito de aprender a tocar. Muito simpático, ele se
ofereceu para me dar aulas, porém, não levei muito a sério, uma vez que eu
trabalhava o dia inteiro e estudava à noite, não dispondo de tempo para tal.
Só
mais tarde, depois de casada, morando num bairro da zona norte, ao abrir o
jornal, certo dia, dei com uma crônica do poeta e escritor Affonso Romano de
Sant’Anna, citando o já falecido poeta e locutor: Bueno de Rivera, meu ex-
vizinho, síndico, dono de uma maravilhosa voz.
Anos
mais tarde, soube que a Escola de Música da UFMG homenagearia o falecido músico
Hostílio Soares. Meu ex-vizinho, pianista, do 12º andar.
Dois
ilustres personagens cujos atributos só fui conhecer após falecerem.
Belo
Horizonte sempre foi assim: um celeiro em todas as artes. Personagens que,
muitas vezes, convivem conosco, porém, destituídos de estrelismos, circulam
pela cidade na simplicidade, endossando a máxima de que mineiro é quieto.
Na
Rua Curitiba, entre Tamóios e Av. Amazonas, no Edifício Levy, morava a família
Borges: Marilton e Lô. Lá se reuniam músicos e poetas: Fernando Brant, Milton
Nascimento, do Clube da Esquina nascido no Bairro Santa Tereza. E eu, no centro
dessa vizinhança, cruzando quase que diariamente com eles, mas sem saber quem
eram, até então.
Nos anos 60, circulavam na
cidade bondes e trólebus, mas foi num ônibus do exército que os alunos de um
Grupo Escolar foram ao Zoológico. Meu irmão estudava no Grupo Escolar José
Bonifácio, em Santa Tereza. Naquela época, antes da mudança para São Paulo,
morávamos na Rua Bom Despacho. E a poesia já se manifestava na infância. Os
alunos do antigo primeiro ano primário, ao se encontrarem com os alunos do
Grupo Escolar Barão de Macaúbas, já poetavam:
– Você estuda no Barão de Macaúbas, ladrão de uvas?
– Eu estudo no José Bonifácio, ladrão de alface.
Quando vínhamos de férias a
Belo Horizonte, eu, ainda menina pequena, só percebia que chegara a Belo
Horizonte quando o carro cruzava o Viaduto de Santa Tereza. A sensação que me
dominava era como se o Viaduto fosse uma passarela ladeada por arcos, que
pareciam lanças que se cruzavam acima do carro e, à medida que o carro ia
ultrapassando o Viaduto, elas iam se separando, assim como soldados perfilados,
cruzando espadas que iam se abrindo ao avançar do carro. Era este o sentimento
que me invadia ao cruzar o Viaduto: ele me saudava, numa atitude de reverência!
Domingo, mês de agosto, ano
2011. Acabo de assistir ao filme: Meia-noite em Paris, de Woody Allen, em que o
protagonista que sonha se tornar um escritor reconhecido, em viagem a Paris, volta
ao tempo e se encontra com escritores e artistas famosos, tais como: Scott
Fitzgerald, Ernest Hemingway, Pablo Picasso e tantos outros. Ao deixar o
cinema, percorro o corredor de saída como zumbi. Sinto que não estou ali.
Adentrei a tela do cinema e caí diretamente no Viaduto de Santa Tereza na Belo
Horizonte de outro século. Lá, também é madrugada. Madrugada vazia e
silenciosa. Nele, passeiam escritores e poetas, cujas obras, para mim, são
fontes.
Vejo Drummond escalando o
arco do Viaduto e o soldado lhe ordenando que desça. Drummond o desafia a
buscá-lo. O soldado começa a escalar o arco, porém, o medo o acomete e ele
recua. “No meio do caminho tinha uma pedra...”
Então, outra cena se revela: Fernando Sabino
está escalando o arco. Firme, ágil, não sente medo do medo. Nadador excelente
no Minas Tênis Clube, tem o espaço como a piscina, e, por isso, o domina. Ele,
Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende estão no Viaduto e nas personagens de
Eduardo Marciano, Hugo e Mauro do livro “O Encontro Marcado”.
A juventude sempre foi
assim: ousada, destemida. Sempre de peito aberto a enfrentar tudo,
independentemente das consequências que possam advir.
Ainda como um autômato,
chego ao estacionamento e entro no carro. Vários carros me circulam, deixando o
shopping, e várias cenas se desenrolam a minha frente. Pergunto-me, em pensamento,
por que conhecemos e convivemos com pessoas de forma esporádica, e só mais
tarde, quando a maturidade nos atinge, ou quiçá, quando passamos a ter “olhos
de ver”, e, assim, certos fatos e pessoas se tornam mais importantes para nós,
tomamos conhecimento do quão nos seria proveitoso e prazeroso reviver cenas
pelas quais passamos ou deixamo-las passar pela nossa vida.
Deixo o estacionamento do
shopping e dirijo-me ao Viaduto Santa Tereza. A noite adentra a madrugada. Paro
o carro no início da Av. Assis Chateaubriand e volto ao viaduto. À medida que
caminho, cenas do filme se misturam a Belo Horizonte de ontem e de hoje. Personagens,
as mais variadas, desfilam diante dos meus olhos. Poetas, escritores,
músicos... Quantos artistas surgiram das alterosas e, também, dela desertaram!
E, pergunto-me, por que desertaram. Minas, celeiro em todas as artes, cidade
acolhedora com um belo horizonte, por que será que não conseguia reter seus
ícones? Ou será que muitos só se tornaram ícones depois que partiram? Incoerente
pensar dessa forma, afinal, se não tivessem talento não se revelariam...
Relembro na literatura, os
mineiros que deixaram seu ninho: Guimarães Rosa, Otto Lara Resende, Carlos
Drummond, Fernando Sabino, Pedro Nava, Affonso Romano de Sant’Anna, Autran
Dourado, Alcione Araújo...
E na Belo Horizonte atual?
Quem se arrisca a ficar? Quem, como Adélia Prado, Luiz Vilela, Fernando Brant,
Tadeu Franco, Celso Adolfo, Vander Lee e tantas outras estrelas, nas mais
diversas artes, retornaram ou não abandonaram Minas, acreditando que é o
talento que projeta, ainda que as ofertas sejam menores ou pouco
compensatórias?
Num mundo globalizado em que
vivemos, que, muitas vezes, prioriza mais o exportar ao importar, muitos
talentos se perdem, incoerentemente, por estarem aqui...
Seria Minas, tal qual o
viaduto de Santa Tereza, travessia? Daqui para o mundo?
Minas é mais que berço. É
colo, é teto, é mundo. “Vasto mundo”. Minas de ouro. Ouro cujo brilho reluz,
muitas vezes, em outras geografias...
Talvez, aqueles que escalaram
os arcos do Viaduto de Santa Tereza estivessem preconizando o futuro aos que
viessem...
Escalar o Viaduto não era
apenas desafiar a coragem, driblar o medo, burlar as normas. Mais que isso, era
vencer-se a si mesmo, enfrentar os fantasmas do comodismo, escrever uma nova
história...
Viaduto, segundo o
dicionarista Luiz Sacconi, grande ponte
de concreto ou de ferro, para uso de veículos e/ou de pedestres, construída
elevada, para transpor um obstáculo (rua, rio, cruzamento, etc.).
Vejamos: ponte elevada para
transpor obstáculo. Não é esta a matéria com que se faz um artista? Forte o
suficiente para enfrentar qualquer obstáculo que queira afastá-lo da sua obra?
Não foi isso que fizeram muitos artistas ao deixarem sua terra natal?
Afinal, Fernando Sabino, no
livro “O encontro marcado”, ilustra toda esta diáspora mineira, em todas as
artes, na busca pelo reconhecimento do talento, de oportunidades de divulgar
esse talento, de levar e elevar o estado de Minas Gerais, vencendo barreiras,
preconceitos raciais, sociais e regionais, escalando obstáculos, dando asas à
coragem, tal qual a travessia dos arcos do Viaduto...:
“De
tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a
certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido
antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um
passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”
Belo Horizonte – Travessias.
Tantas: do centro ao bairro, do bairro ao
centro, de idas e voltas, de idas sem volta, de belos horizontes ao mundo! Afinal,
“todo artista tem de ir aonde o povo está”, apesar de ”uma pedra no meio do
caminho” e “Itabira é apenas uma
fotografia na parede. Mas como dói...”, o verdadeiro artista mineiro, humilde na
grandeza do seu talento, sempre se verá como “Um artista aprendiz!”