terça-feira, 16 de agosto de 2016

"Acorda Maria bonita...e a polícia já está de pé."




Se há uma palavra que define a minha tia é SURPREENDENTE.  Quando eu, ainda menina, andava com ela pelo centro de Belo Horizonte conversando distraidamente, de repente percebia que ela não me respondera e ficara para trás. Virava-me e a via segurando o pezinho de um bebê que estava sem os sapatinhos e a ouvia dizer à mãe: “não pode sair com o bebê descalço. Veja: o pezinho dele está frio e a saúde está nos pés.” Algumas mães até se desculpavam e retiravam os sapatinhos da bolsa para colocá-los no bebê; outras desafiavam a minha tia perguntando o que ela tinha a ver com isso. Ela não se apoquentava, não respondia e agia como se nada tivesse acontecido. Sempre foi assim. Tratava qualquer pessoa como se a conhecesse. Com uma familiaridade surpreendente. Nem sempre se dava bem: muitas vezes ouvi chamarem-na de louca, intrometida e essas coisas, mas ela não se alterava e nem alterava o comportamento. Continuava agindo da mesma forma, mesmo quando completou 87 anos de vida. Lúcida, muito lúcida, sabia os telefones da família de cor, tinha na mente os números do seu RG e CPF e, quando os esquecia em casa, convencia àqueles que lhe solicitavam os documentos a considerarem os seus números guardados na memória...
            ESPERTEZA também era uma das suas qualidades. Não aquela esperteza de levar vantagem em tudo, burlando normas e sendo desonesta, mas a esperteza necessária quando atravessava momentos difíceis. Ao invés de entrar em desespero, sempre achava uma saída, por mais inusitada que fosse. Certa feita, por volta dos seus 70 anos de vida, dirigiu-se a um ponto de táxi, com a neta, na época, na faixa dos 12 anos, a fim de levá-la ao salão de beleza para cortar o cabelo. Viúva de um “chofer de praça”, como eram chamados os taxistas da década de sessenta, aprendeu com ele que a melhor maneira de se livrar de motoristas desonestos era buscar um ponto de táxi mais próximo de onde nos encontramos, pois, os outros motoristas, geralmente, se conhecem e sabem dar informações se necessárias. E assim ela fez. Entrou no táxi e tratou de travar conversa com o homem imediatamente. Ficou sabendo se era casado, solteiro, viúvo ou “tico-tico no fubá” (como ela se referia aos amasiados), se tinha filhos, onde residia, enfim, no final da corrida, sabia o currículo completo do motorista, além de, agora, passados os anos 2000, enfiar dentro da bolsa o cartão de visita do taxista.
Pois bem, ao deixar o táxi com a neta, esta começa a buscar freneticamente dentro da bolsa o celular de última geração, trazido pela mãe dos EUA. Procura daqui, procura dali, pergunta para a avó, vasculha bolsas, sacolas e... nada! Em pânico, a neta dispara a chorar. Minha tia não se altera. Entra no salão, assenta-se, pega o seu celular e o cartão do motorista de táxi. Disca, o celular do homem começa a chamar, ele atende e ela lhe pergunta primeiramente se ele está livre, no que ele responde que sim, que acabou de deixar uma passageira ali perto (que era ela e a neta, afinal, não se passara dez minutos), ela pede que ele olhe no banco de trás e veja se o celular da neta está sobre o banco (fato que já era certo, já que a neta se lembrou de que o deixou de lado ao abrir a bolsa para pegar qualquer coisa). O homem titubeia e diz que não tem nenhum celular. Imediatamente, ela aciona o seu lado atriz, que sempre existiu, e começa choramingando: “Moço, o senhor tem de me devolver esse celular. Quem deu para a minha neta foi o meu irmão, e, sabe moço, eu estou morrendo de medo porque ele trabalhou na polícia e me contava o tanto de gente que ele fez desaparecer. Ele é muito nervoso, me bate muito e é capaz de surrar a sobrinha neta e dar um jeito no senhor, porque ele vai achá-lo de qualquer jeito.”
Um silêncio do outro lado, e ela insistindo: “moço, o senhor está me ouvindo? Volta lá no ponto em que o senhor estava que eu procuro o celular no seu carro. Tem de ser agora. Eu não posso voltar para casa sem ele, moço.”
O homem, nervoso, fala: “minha senhora, eu estou indo para o aeroporto buscar um passageiro. Devo retornar daqui uma hora... E não estou vendo celular nenhum... só se caiu no chão...
“Não tem problema, eu espero – ela arrematou. E o celular tá aí, sim. Pode procurar. A minha neta deixou no banco... Espero no mesmo ponto, viu?”
Enquanto isso, a neta já estava se embelezando...
Quinze minutos antes de completar a hora combinada, minha tia deixou o salão, buscou outro ponto de táxi e se dirigiu ao ponto anterior. Lá chegando, travou um bate-papo com os motoristas que lá estavam, soube mais da vida do taxista, contou a eles a história do irmão irado, deixando-os apavorados, quando o motorista encostou seu carro. Irritado, desceu do carro com o celular na mão, entregou a ela e quando ela lhe deu as costas, ouviu um sussurro: ”essa mulher é louca!”, enquanto os companheiros riam e debochavam dele.
Dirigindo-se a outro ponto de táxi para buscar a neta, falou para si mesma: “fazer o papel da Maria Bonita, mulher do Lampião, no teatro da Faculdade de Terceira Idade, me trouxe um ótimo aprendizado!”.


domingo, 1 de maio de 2016

A DEUS

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Numa triste manhã de verão, sob uma chuva forte que banhava a cidade, seguia o cortejo morosamente rumo ao cemitério. Dentro da urna, um jovem de quinze anos, vítima de um acidente de carro em vésperas de carnaval, sepultava todos os sonhos de adolescente que ainda despertavam.
          Fora tudo muito rápido, e explicações não caberiam e nem existiriam para desvendar os mistérios de Deus.
          O carro trafegava responsavelmente pela estrada que leva ao interior mineiro. Dentro dele, a irmã ao volante e o namorado ao seu lado. Atrás, o jovem e a namorada à sua direita.
          Poucos minutos antes do acidente, ele se deita no colo da namorada, e, sem ensaiar e se inteirar da despedida que pouco tempo depois o atingiria, faz a declaração apaixonada: “vou te amar pra sempre, sabia?”. E então, surge a carreta. Como se viesse do nada. E a pancada. A forte pancada na cabeça. O escuro total. E, definitivamente, as páginas do livro da sua vida são fechadas. Foi o maior saldo negativo do acidente, pois, os outros passageiros tiveram pequenos ferimentos.
       O pânico, a dor, o desespero se instalam na estrada. Polícia, ambulância, parentes. Uma parafernália de aparelhos, investigações, perguntas, providências... O velório. O rosto sereno de quem cumpriu sua missão, rodeado pelas lágrimas, pela desesperada busca de compreensão, pela eterna saudade...
        Chega o momento final da separação física, porque as outras já foram confirmadas no momento do silêncio maior.
      Uma forte chuva acompanha o cortejo até a cova aberta à espera do escolhido. De repente, o inusitado. A chuva para e, dentro da cova, um passarinho passeia livremente, como se estivesse recepcionando com alegria o seu mais novo hóspede. Os coveiros tentam retirá-lo, abanando as mãos. Porém, o pássaro alheio a tudo, pula com suavidade na terra, enquanto parece beijá-la com o bico. E, num breve espaço do instante, encanta o ar com seu delicado voo e, para surpresa de todos, pousa suavemente no ombro da mãe do jovem falecido.
      Ainda inconsolada e em prantos, a jovem senhora contempla o pássaro que docemente se deixa pegar pelas mãos do sofrimento.  A mulher beija a cabecinha da ave, como se tivesse entendido o consolo do Mestre, abre as mãos, numa atitude de agradecimento, e devolve aos céus o presente que lhe foi ofertado por quinze anos.
    Em meio as várias coroas de flores que cobrem a terra, um passarinho repousa sobre um botão e convence os presentes de que o empréstimo foi saldado. Não há mais dúvida, nem dívida. A recompensa? O outro lado há de fornecer.