“Se eu não achar cama, virei para a
tua, disse o mendigo à morte.”
Cláudio Feldman
Fecha a
porta do banheiro e o basculante. Aquece o ambiente trancando o ar entre as
quatro paredes e obedece ao ritual de todas as noites que, hoje, se faz muito
fria. Despe-se, rapidamente, enquanto a água do chuveiro desce farta e quente
inundando o ambiente com uma nebulosa de fumaça. Deixa o corpo sorver desta
maravilha alguns segundos, antes de iniciar a higiene diária. Fecha os olhos
para que o seu interior também absorva os benfazejos do banho, quando vê o
mendigo seminu encolhido sob o jornal, na vã tentativa de dominar o frio que o
invade. Tenta, desesperadamente, abrir os olhos para fugir da imagem que o
atormenta. Qual o quê! A imagem insiste e persiste dentro da sua retina como se
o acusasse do prazer, ora, desfrutado. Repentinamente, a água esfria, gela.
Sente um arrepio de dor e horror percorrer-lhe o corpo. Ergue a mão e puxa a
felpuda e macia toalha para agasalhar o corpo. Fecha a torneira imediatamente,
ao mesmo tempo em que vislumbra, finalmente, duas gotas de lágrimas descendo
pelo rosto do homem roto. Sofregamente, leva a toalha aos olhos tentando
afastar a imagem que o alucina, mas ela não se desfaz. Impera. Um homem só,
numa esquina qualquer, debaixo de uma marquise tenta se proteger do frio que
invade seu frágil corpo. A imagem é constante, instigante, penetrante.
Enxuga-se
numa fração de segundos e vai, paulatinamente, colocando as peças sobre o
corpo. Finalmente, o sobretudo. Dirige-se à janela e, do 12o andar,
seus olhos se encontram aos do outro lá embaixo e sente a hierarquia da
diferença. Ele no alto e o outro embaixo, em todos os sentidos.
Fecha a
cortina abruptamente.
Dirige-se
ao seu trono de repouso. Sob uma claridade leve e suave está a larga cama
coberta por grosso cobertor à sua espera. Repousa o corpo e o aquece. Fecha os
olhos e adormece. Sonha pesadelos. Sente frio. Acorda sobressaltado com o corpo
à mostra. Puxa novamente o cobertor e se aquece. A imagem do mendigo
revirando-se no chão tentando aplacar o frio, o incomoda. Desperta e volta à
janela. A cena se desenrola sob os seus olhos. O homem está encolhido e inerte.
Volta para a cama e adormece.
Na manhã
seguinte, acorda com o despertar de sirenes e buzinas. Após abastecer o
estômago desce até a rua e chega no momento em que o corpo gélido é retirado da
calçada. Sob o jornal nada macio, o homem tentava proteger o corpo, acreditando
que driblava a morte.
Fatinha,
ResponderExcluirVai ai a minha reflexão nos 'contornos' do teu texto.
Um por não ter e outro pelo que tem.
Mistérios da posse?
Parabéns, é sempre bom seguir as veredas dessa seara que vc delineou.
Celio
Obrigada, Célio.
ResponderExcluirMeu abraço.
Mãe, é muito triste e verdadeiro, mas você coloca de uma forma que força uma reflexão sincera e até bonita. Gostei muito! (Já conhecia...)
ResponderExcluirObrigada pela releitura, querida.
ExcluirTocante Fátima,
ResponderExcluirParabéns pelo seu dom!
Obrigada, Fábio, pela sua disponibilidade de leitura e comentário. Receba o meu abraço.
ResponderExcluirAdorei! Não tinha lido esse ainda. Uma reflexão para a crescente onda de consumismo que varre este mundo...
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