quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Reformando a vida


Decidi tecer com a linha da memória
E arrematar o pano de fundo da minha história.
Devo cerzir os buracos provocados pela dor
E dar bainha em todas as formas de rancor.
Hei de cortar as sobras negativas do ter sido
E tingir de esperança o laço do perdão remido.
Pregarei todos os colchetes da união
E usarei o dedal da dose de proteção
Ao concluir a arte final da criação!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Belo Horizonte - Travessias



Não por acaso nasci em Belo Horizonte, mas por destino, confirmado depois pelo meu retorno, após dez anos de residência em São Paulo. E, por eu estar ausente, mais presente Belo Horizonte se fez em minha memória, principalmente, porque vínhamos de férias todos os anos.

            As lembranças do Bairro Floresta tornavam-se, cada dia, mais longínquas, dado o tempo que se distanciava.
            Deixei Belo Horizonte aos quatro anos de idade, com destino à capital paulista. Nessa idade, conheci o significado de saudade e já tinha, no olhar, visões de passado.
            Na bagagem fonética, “uai” e “trem” faziam parte do meu vocabulário, ironizados pelos paulistas. Lá, a bisnaga era bengala, e o balão, bexiga. Não se tomava “bomba” na escola e, sim, era reprovado. A recuperação era segunda época, e prova era sabatina, ainda que não acontecesse aos sábados.
            Nas férias de julho e dezembro, eu partia com a família para a capital mineira, onde os parentes residiam. Os passeios ao centro da cidade davam-se a pé para admirarmos as paisagens. Inesquecíveis os carrinhos de frutas nas esquinas, exalando os cheiros de abacaxi e laranjas descascadas na hora, pela manivela manual que, artisticamente, retirava a casca por inteiro e eu a rodava, recitando o abecedário, aguardando que ela se arrebentasse, revelando-me a letra do nome daquele que seria, futuramente, o meu escolhido.
            Descendo a Rua Tamóios, em direção à Igreja São José, atravessávamos a arborizada Av. Afonso Pena e ganhávamos o Viaduto de Santa Tereza. Imponente, majestoso, impunha-se, a mim, como passarela, sendo os arcos à esquerda e à direita lanças, num crescente e decrescente, abrindo-me passagem...
            À noite, com seus postes antigos iluminando-o, mais parecia uma ponte flutuante. Via de mão-dupla, assim como a vida, sempre ligou o passado ao futuro – o centro ao bairro –, num constante ir e vir, numa ascendência e descendência nos seus arcos parabólicos.
            O viaduto construído sobre a linha férrea e o Rio Arrudas, como eles, tem por missão a travessia. O início e o final se confundem, dependendo da direção que se toma. Assim, também, é a vida. Onde começa? Onde termina? Seria a vida o início, e a morte o seu final? Quem sabe a morte seja realmente o início da vida? Assim, também, são as estações de trem: é sempre início para quem parte, como final para quem chega. Porém, o contrário também se dá...
            A verdade é que o Viaduto de Santa Tereza ligava dois mundos diferentes. No centro, apesar daquela época, a vida já fervilhava e lá as pessoas se aglomeravam. Depois do Viaduto, em direção ao bairro, a calma era restaurada, e a vida transcorria leve e mais silenciosa.
            As ruas dos bairros, desprovidas do progresso atual, tornavam-se pátios das brincadeiras, nos quais bolas deslizavam num vaivém, nas peladas e jogos de queimada das tardes que escorriam inundadas apenas com os gritos das crianças, sem barulho de motores, buzinas...
            À noite, eram palcos de conversas no portão, ladeado por cadeiras nas calçadas.
            No edifício em que morei, Ribeiro de Rezende, na Rua Tamóios, durante dez anos, dois personagens faziam parte do meu dia a dia. O primeiro, síndico do prédio, descia comigo no elevador quase todas as manhãs. Admirava-me ao ouvi-lo me cumprimentar: “Bom-dia!”
            Que linda voz tinha aquele homem! E que simpatia! Lembro-me de que, aos 18 anos, quando comecei a frequentar o curso de Letras, na UFMG, que, naquela época, funcionava na FAFICH, na Rua Carangola, adquiri uma mochila marrom timbrada: Letras-UFMG. O ilustre vizinho perguntava-me se eu estava gostando do curso, se eu gostava de literatura, de poesia... e, eu, ainda ignorante de muitos ícones literários mineiros daquela época, respondia a ele monossilabicamente.
            O outro vizinho morava no último andar: 12º. Um senhor baixo, de cabeça branca, magro e muito silencioso. Soube que morava sozinho e tinha um lindo piano que tocava diariamente. Certo dia, no elevador, perguntei se ele dava aula de piano, pois gostaria muito de aprender a tocar. Muito simpático, ele se ofereceu para me dar aulas, porém, não levei muito a sério, uma vez que eu trabalhava o dia inteiro e estudava à noite, não dispondo de tempo para tal.
            Só mais tarde, depois de casada, morando num bairro da zona norte, ao abrir o jornal, certo dia, dei com uma crônica do poeta e escritor Affonso Romano de Sant’Anna, citando o já falecido poeta e locutor: Bueno de Rivera, meu ex- vizinho, síndico, dono de uma maravilhosa voz.
            Anos mais tarde, soube que a Escola de Música da UFMG homenagearia o falecido músico Hostílio Soares. Meu ex-vizinho, pianista, do 12º andar.
            Dois ilustres personagens cujos atributos só fui conhecer após falecerem.
            Belo Horizonte sempre foi assim: um celeiro em todas as artes. Personagens que, muitas vezes, convivem conosco, porém, destituídos de estrelismos, circulam pela cidade na simplicidade, endossando a máxima de que mineiro é quieto.
            Na Rua Curitiba, entre Tamóios e Av. Amazonas, no Edifício Levy, morava a família Borges: Marilton e Lô. Lá se reuniam músicos e poetas: Fernando Brant, Milton Nascimento, do Clube da Esquina nascido no Bairro Santa Tereza. E eu, no centro dessa vizinhança, cruzando quase que diariamente com eles, mas sem saber quem eram, até então.                    
Nos anos 60, circulavam na cidade bondes e trólebus, mas foi num ônibus do exército que os alunos de um Grupo Escolar foram ao Zoológico. Meu irmão estudava no Grupo Escolar José Bonifácio, em Santa Tereza. Naquela época, antes da mudança para São Paulo, morávamos na Rua Bom Despacho. E a poesia já se manifestava na infância. Os alunos do antigo primeiro ano primário, ao se encontrarem com os alunos do Grupo Escolar Barão de Macaúbas, já poetavam:
            – Você estuda no Barão de Macaúbas, ladrão de uvas?
            – Eu estudo no José Bonifácio, ladrão de alface.
Quando vínhamos de férias a Belo Horizonte, eu, ainda menina pequena, só percebia que chegara a Belo Horizonte quando o carro cruzava o Viaduto de Santa Tereza. A sensação que me dominava era como se o Viaduto fosse uma passarela ladeada por arcos, que pareciam lanças que se cruzavam acima do carro e, à medida que o carro ia ultrapassando o Viaduto, elas iam se separando, assim como soldados perfilados, cruzando espadas que iam se abrindo ao avançar do carro. Era este o sentimento que me invadia ao cruzar o Viaduto: ele me saudava, numa atitude de reverência!

Domingo, mês de agosto, ano 2011. Acabo de assistir ao filme: Meia-noite em Paris, de Woody Allen, em que o protagonista que sonha se tornar um escritor reconhecido, em viagem a Paris, volta ao tempo e se encontra com escritores e artistas famosos, tais como: Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Pablo Picasso e tantos outros. Ao deixar o cinema, percorro o corredor de saída como zumbi. Sinto que não estou ali. Adentrei a tela do cinema e caí diretamente no Viaduto de Santa Tereza na Belo Horizonte de outro século. Lá, também é madrugada. Madrugada vazia e silenciosa. Nele, passeiam escritores e poetas, cujas obras, para mim, são fontes.
Vejo Drummond escalando o arco do Viaduto e o soldado lhe ordenando que desça. Drummond o desafia a buscá-lo. O soldado começa a escalar o arco, porém, o medo o acomete e ele recua. “No meio do caminho tinha uma pedra...”
 Então, outra cena se revela: Fernando Sabino está escalando o arco. Firme, ágil, não sente medo do medo. Nadador excelente no Minas Tênis Clube, tem o espaço como a piscina, e, por isso, o domina. Ele, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende estão no Viaduto e nas personagens de Eduardo Marciano, Hugo e Mauro do livro “O Encontro Marcado”.
A juventude sempre foi assim: ousada, destemida. Sempre de peito aberto a enfrentar tudo, independentemente das consequências que possam advir.
Ainda como um autômato, chego ao estacionamento e entro no carro. Vários carros me circulam, deixando o shopping, e várias cenas se desenrolam a minha frente. Pergunto-me, em pensamento, por que conhecemos e convivemos com pessoas de forma esporádica, e só mais tarde, quando a maturidade nos atinge, ou quiçá, quando passamos a ter “olhos de ver”, e, assim, certos fatos e pessoas se tornam mais importantes para nós, tomamos conhecimento do quão nos seria proveitoso e prazeroso reviver cenas pelas quais passamos ou deixamo-las passar pela nossa vida. 
Deixo o estacionamento do shopping e dirijo-me ao Viaduto Santa Tereza. A noite adentra a madrugada. Paro o carro no início da Av. Assis Chateaubriand e volto ao viaduto. À medida que caminho, cenas do filme se misturam a Belo Horizonte de ontem e de hoje. Personagens, as mais variadas, desfilam diante dos meus olhos. Poetas, escritores, músicos... Quantos artistas surgiram das alterosas e, também, dela desertaram! E, pergunto-me, por que desertaram. Minas, celeiro em todas as artes, cidade acolhedora com um belo horizonte, por que será que não conseguia reter seus ícones? Ou será que muitos só se tornaram ícones depois que partiram? Incoerente pensar dessa forma, afinal, se não tivessem talento não se revelariam...
Relembro na literatura, os mineiros que deixaram seu ninho: Guimarães Rosa, Otto Lara Resende, Carlos Drummond, Fernando Sabino, Pedro Nava, Affonso Romano de Sant’Anna, Autran Dourado, Alcione Araújo...
E na Belo Horizonte atual? Quem se arrisca a ficar? Quem, como Adélia Prado, Luiz Vilela, Fernando Brant, Tadeu Franco, Celso Adolfo, Vander Lee e tantas outras estrelas, nas mais diversas artes, retornaram ou não abandonaram Minas, acreditando que é o talento que projeta, ainda que as ofertas sejam menores ou pouco compensatórias?
Num mundo globalizado em que vivemos, que, muitas vezes, prioriza mais o exportar ao importar, muitos talentos se perdem, incoerentemente, por estarem aqui...
Seria Minas, tal qual o viaduto de Santa Tereza, travessia? Daqui para o mundo?
Minas é mais que berço. É colo, é teto, é mundo. “Vasto mundo”. Minas de ouro. Ouro cujo brilho reluz, muitas vezes, em outras geografias...
Talvez, aqueles que escalaram os arcos do Viaduto de Santa Tereza estivessem preconizando o futuro aos que viessem...
Escalar o Viaduto não era apenas desafiar a coragem, driblar o medo, burlar as normas. Mais que isso, era vencer-se a si mesmo, enfrentar os fantasmas do comodismo, escrever uma nova história...
Viaduto, segundo o dicionarista Luiz Sacconi, grande ponte de concreto ou de ferro, para uso de veículos e/ou de pedestres, construída elevada, para transpor um obstáculo (rua, rio, cruzamento, etc.).
Vejamos: ponte elevada para transpor obstáculo. Não é esta a matéria com que se faz um artista? Forte o suficiente para enfrentar qualquer obstáculo que queira afastá-lo da sua obra? Não foi isso que fizeram muitos artistas ao deixarem sua terra natal?
Afinal, Fernando Sabino, no livro “O encontro marcado”, ilustra toda esta diáspora mineira, em todas as artes, na busca pelo reconhecimento do talento, de oportunidades de divulgar esse talento, de levar e elevar o estado de Minas Gerais, vencendo barreiras, preconceitos raciais, sociais e regionais, escalando obstáculos, dando asas à coragem, tal qual a travessia dos arcos do Viaduto...:

“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”
Belo Horizonte – Travessias.
 Tantas: do centro ao bairro, do bairro ao centro, de idas e voltas, de idas sem volta, de belos horizontes ao mundo! Afinal, “todo artista tem de ir aonde o povo está”, apesar de ”uma pedra no meio do caminho” e  “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói...”, o verdadeiro artista mineiro, humilde na grandeza do seu talento, sempre se verá como “Um artista aprendiz!”   
 


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Visita a Machado de Assis



Sei que estas palavras vão encontrá-lo no mais profundo do sono, quiçá, no despertar eterno...
Mas urge que eu as diga.
Estou aqui, postado a sua tumba, na esperança de sorver, ainda que você não mais respire, a nuvem de inspiração que o envolveu nos seus escritos.
É provável que, se vivo fosse, você me diria para não gastar as solas do meu sapato em vã escalada, afinal, só se atinge o topo, principalmente o literário, por meio de inúmeras leituras e, claro, muitas palavras deitadas no papel. Sim, no papel, afinal, no seu século, eram as penas que depenavam as folhas com garranchos e rabiscos (ilegíveis alguns manuscritos, tamanha era a rapidez da escrita para expor os pensamentos que se atropelavam). E mais: leia os clássicos. Todos. Neles, estão contidas todas as mazelas da humanidade desde os seus primórdios. Os tempos mudam. Sei. O progresso invade-nos por dentro e por fora. Até as doenças se atualizam. Antes, morria-se de tísica, pneumonia, febre amarela... Hoje, morre-se de doença universal: câncer, nas suas mais variadas raízes...
– Perscrute a história (você, com seu pincenê na ponta do nariz e dedo em riste, certamente, diria). Lá, estão incrustados todos os vícios e os pecados capitais da humanidade, ainda no engatinhar do progresso nos transportes, nas comunicações, enfim, desde que o homem surgiu na vertical – produzindo o fogo com o atrito das pedras, matando animais para se alimentar, construindo abrigo mais que rudimentar para se proteger das altas e baixas temperaturas, do fogo do sol e da água do céu – a soberba, a humildade, a inveja, a beleza, o ciúme, o bem, o mal, o ódio e o amor já se digladiavam, buscando reinar no coração humano. Essa é a matéria bruta com que se faz a arte. Seja ela em prosa ou verso; em tela ou som; em barro ou ferro... Mas há que se vigiar! “Nem tudo que reluz é ouro”, nem tudo que é exposto tem valia. É preciso, primeiro, eliminar algumas damas e cavalheiros expostos acima, para que a essência seja a mais pura, a mais original, pois, com alguns deles a tiracolo, as vistas se embaçam, as ideias intimam a razão para um duelo, suplicando, no final, à inveja, à soberba ocupar o trono imaginário, instalado na cabeça de um néscio.
Não busque tanto dar serviço ao corpo, levando-o a tantos lugares, outras nações, pensando que, com isso, ele absorverá cultura, inflando-se de sabedoria. Nunca saí do Cosme Velho, e, no entanto...
Sobretudo, dê especial atenção à cabeça: olhos, nariz, ouvidos e boca. Eles são seus maiores meios de comunicação e de transporte. Com os olhos, você irá ao infinito, nas múltiplas leituras que se dispuser a se aventurar; o nariz resgatará os mais antigos odores que marcaram sua infância, seu passado, transportando, à sua mente, cenas domésticas de almoços, jantares, festas familiares, esterco no curral, perfume da primeira namorada, suor de uma conquista, ao mesmo tempo que, também, invadirá as suas narinas o cheiro das flores derramadas em volta do corpo de um estimado...
Os ouvidos sempre serão sua porta de entrada. É por eles que lhe chegarão as mais diversas histórias, quer você as tenha solicitado ou não. Em casa, nas ruas, nos bares, nos bondes, livrarias, hospitais, escola, trabalho, funerais... Onde quer que você esteja, sempre haverá alguém contando, para você ou outro alguém, acontecimentos vivenciados por ele ou outrem. E isso deve ir diretamente para o seu arquivo mental. Fatalmente, dar-lhe-á várias histórias.
E, finalmente, a boca. Talvez seja a menos importante de todos os componentes de sua face no quesito literatura, afinal, nem todos os poetas ou escritores sentem-se à vontade para declamar seus versos ou ler seus escritos. Porém, ela lhe será de grande valia ao comunicar-se com os outros. Ela abrirá corações endurecidos, facilitará revelações sigilosas...
Enfim, caro mancebo, não fique nas nuvens, esperando que a chuva de inspiração desça sobre você. Os elementos estão com você. Em você. Enlace-os e se desenlace.

De repente, vi-me assentado, comodamente, “sobre” Machado, escrevendo essas parcas linhas...

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Laboratório Cont'minado

 



Especialistas em vaso sanitário – desculpem-me, esqueci de que a “melhor” palavra é privada – farão experiências com torneiras. O principal objetivo será abri-las, dando maior vazão à água, embora, ao final do experimento, o resultado seja uma invasão do esgoto (desculpem-me novamente. Retifico: de merda), levando alguns inexperientes participantes a fechá-las em definitivo, e, outros, a aderir à conclusão de que a merda seja necessária.

 Embora o espaço do laboratório fosse amplo, e uma pseudodescontração parecesse reinar nesse ambiente, a vez e a voz cabiam apenas aos especialistas, repito: em vaso sanitário, ainda que o objetivo fosse abrir torneiras...

 Cientes de que o oxigênio e o gás carbônico sejam necessários à perpetuação da espécie, os aspirantes a especialistas são, paulatinamente, conduzidos ao curral, sutilmente encurralados, reduzindo-se a gado: um atrás do outro, em obediência, e priorizando o gás carbônico...

 Por fim, não se veem mais como aspirantes: os que, após o experimento, se julgaram “incapacitados”, desistiram da especialização.

 Já os que se julgaram capacitados concluíram ser o vaso sanitário, isto é, a privada, mais importante que as torneiras, afinal, a “contaminação” tem maior alcance e, por isso, talvez seja mais importante se especializar em merda do que em torneiras para expulsá-la...


 

domingo, 21 de setembro de 2014

As estações da vida

 

Estávamos na primavera, a estação das flores. Os jardins pintavam a paisagem da cidade com suas flores multicores e, nas calçadas, os ipês de variados matizes forravam o chão embelezando as alamedas.
            Entrei no ônibus, que não estava cheio, e acomodei-me na cadeira da janela para observar a paisagem, enquanto deixava minha mente passear no meu passado, quando o perfume de flores invadiu as minhas narinas, levando-me a outra primavera de recordação e saudades: minha infância.
            Vejo-me menino esperto e sedento de aventuras na cidadezinha mineira de minha origem. Apesar do físico mirrado, aos 10 anos de idade não temia domar os irreverentes cavalos adquiridos pelo meu pai, nem conduzir a boiada à outra cidade, quando necessário. Ordenhar as vacas, no final da madrugada, após cavalgar até o sítio, era-me de grande prazer. Sentado no banquinho colocado aos pés da vaca, segurava firmemente suas tetas e num sincronismo de movimentos, eu via jorrar aquele leite grosso e espumante dentro do balde, que depois seria distribuído aos moradores da pequena cidade.
            E foi justamente um choro de criança que me trouxe de volta à realidade.
Elas estavam assentadas à minha frente, na dianteira direita do ônibus: a mãe e a filha com o bebê no colo.
            O ônibus trafegava no morno silêncio da tarde, já que adentrara no bairro de classe baixa da metrópole mineira.
O silêncio dos passageiros foi quebrado pelo choro insistente do bebê.  As duas mulheres conversavam em cicio, enquanto o bebê se agitava no colo da mãe. Consegui captar o olhar de ordem da mãe dirigido à filha, embora não entendesse as palavras imperativas.
            A filha, por sua vez, avermelhou o rosto. Enrubesceu-se enquanto chacoalhava a criança no colo, ansiando cessar seu choro.
            A avó voltou seus braços para o bebê, acomodando-o melhor para receber o alimento no colo da mãe.
            A jovem mãe, ainda envergonhada, olhou de soslaio para os passageiros, deu ainda com os meus olhos que procurei desviá-los imediatamente, e, embora receosa, voltou seus olhos para o bebê em pranto, abriu a blusa e retirou o seio para lhe oferecer.
            Mas o bebê já se irritara o suficiente e não conseguia abocanhar o peito, tamanha a ansiedade da mãe.
            A mulher, inquieta, tenta acalmar o bebê enquanto introduz o bico do seio na pequenina boca do infante. O bebê agita a cabecinha e grita sem conseguir mamar o leite que saciará sua fome.
            Entre sussurros de “psius” da avó já incomodada com os olhares dos passageiros e o nervosismo da filha, a jovem mãe resolve conversar com o bebê a fim de convencê-lo a sugar-lhe o leite:
            “Mama, neném. Mama, senão o gatinho vai mamar.”
            E o bebê continuava chorando.
            A mãe começa a se apavorar e repete seguidamente: “mama, neném, anda, mama, senão o gatinho vai mamar.”
            Foi quando, de repente, ouviu-se do fundo do ônibus um lento miado masculino: “miauuuu, miauuuu”.
            A mulher, assustada, guarda o seio sob a blusa e dirige o olhar suplicante para o homem que estava assentado na cadeira à esquerda de sua mãe.
            O sujeito abre a sacola do bebê que está no seu colo, e ergue seu corpo de 1,90m no corredor do ônibus, enquanto aponta um “38” para todos os passageiros e pergunta, cuspindo sua ira:
            _ Quem é o gatinho que está querendo mamar, hein?
            Um silêncio de morte impera dentro do ônibus, pois, com o grito do homem até o bebê emudeceu, e percebo que todos os olhares masculinos se voltam para a janela, buscando a rua como fuga.
            Sucessivos pedidos de calma são dirigidos ao homem, pela avó do bebê, enquanto a campainha do ônibus é acionada e dois homens (prováveis miadores) ganham a rua.
            Aos poucos, o silêncio e a calma voltam a reinar dentro do ônibus, já quase vazio, e eu volto o meu olhar à rua e continuo a minha viagem ao passado, enquanto observo as paisagens, os transeuntes...

            E, então, em frente à padaria, o ônibus chega ao meu destino. Desço, entro na padaria e compro o leite e o pão para alimentar meus filhos, que não mais estão na primavera como o bebê. Saíram da doce infância e, inquietos, sorvem com ansiedade o verão da juventude, enquanto eu e minha esposa serenamos no nosso outono, para que tenhamos um inverno pacífico e aconchegante.



                                                          
 

domingo, 15 de junho de 2014

Minha vida é uma partida de futebol


Entro em campo, diariamente, em meio a mais de um milhão de pessoas que habita esta metrópole.

O tempo da partida é cronometrado sagradamente todos os dias, o que não me impede de, quase sempre, fazer jus da prorrogação, principalmente em se tratando da minha sobrevivência: meu horário para almoçar sempre ultrapassa o horário normal de muitos viventes...

Nas diversas conquistas às quais me submeto, sofro diversos escanteios (nos ônibus, nas filas...); faltas – na aglomeração das ruas, sou atropelado por transeuntes mais que apressados...; e cartão amarelo é o que acumulo desde que me tornei cidadão com inúmeras responsabilidades: no trabalho, então, sempre sou alertado que: “desta vez passa, mas, na próxima...”

A mudança de técnicos que me comandam, seja na vida particular como na profissional, se dá esporadicamente. Se, no amor, a coisa não vai bem, logo acho substituta; já, no trabalho, a coisa é mais demorada, afinal, tenho de avaliar os custos de uma substituição à altura...
Tenho consciência dos sacrifícios necessários nesta competição acirrada, por isso, submeto-me a diversos exercícios físicos e mentais, mesmo cansadíssimo da jornada...
Vez por outra, penso em deixar o time da casa e arriscar uma conquista maior no exterior, porém, o orgulho pela camisa que visto ainda é grande...

Quando insisto em driblar as regras do jogo, posso ser retirado de cena definitivamente, abortando um futuro promissor, ou levar um cartão vermelho, dando descanso temporário ao meu corpo e minha mente, para retornar recuperado...
Finalmente, após acumular várias perdas e vitórias, às vezes, mais perdas que vitórias, encerro minha carreira no jogo da vida e me transformo em mais uma estrela neste espaço infinito...


sábado, 10 de maio de 2014

Mãe - Uma Escola de Vida!

              



                                                                         
Mãe
Reunião de todas as disciplinas na escola da vida.

Mãe em Português
Palavra que não tem sinônimo, porque é única e insubstituível.

Mãe em Matemática
Vinte e quatro horas de dedicação e 100% de doação.

Mãe em Biologia
Cérebro e coração caminhando juntos; é todo o corpo humano que se integra na missão de acolher, compreender e direcionar.

Mãe em Química
União harmoniosa de elementos químicos num seio materno, nos fornecendo todas as vitaminas e proteínas necessárias à nossa subsistência.

Mãe em Física
Velocidade e ação em sincronia com o cotidiano: é o corpo que se move em direção ao infinito.

Mãe em Geografia
Um imenso território de bondade repleto de relevos de emoções.

Mãe em Educação Física
Difícil missão de arbitrar, nos ensinando a ganhar e a perder em todos os jogos da vida.

Mãe em Línguas
Todas as palavras que nos soam estranhas, mas que têm profundo significado indicando-nos o caminho do bem.

Mãe em História
Uma reunião de sabedoria desde a pré-história até os tempos modernos.

Mãe em Desenho
Uma obra de arte englobando todas as figuras geométricas desenhadas pela mão do Criador.

Mãe é tudo isso. É, sobretudo, o amor de Deus num corpo de mulher para se dar, amar e perdoar.